João Ninguém
Ofegava enquanto arrastava sua carroça. Aquele dia achara várias coisas “valiosas” no lixo. A renda garantiria comida e bebida por uns três dias, calculava. O semáforo o fez parar. Não achou ruim, afinal poderia descansar um pouco. O dia estava extremamente quente. Seu corpo estava molhado pelo suor. Parecia não se incomodar com as moscas que esvoaçavam em torno de sua cabeça. Seu fiel cachorro, aproveitando a parada, sentou-se aos seus pés. Algumas gotas de suor, que nasceram em sua testa, penetraram em seus olhos provocando uma certa ardência. Imediatamente levou suas mãos imundas para esfregá-los. A ardência aumentou, provocando-lhe uma certa inquietação e aborrecimento. Piscou várias vezes. Foi neste momento que olhou para o lado e observou a vitrine de uma das lojas, que, como todas as outras, estava enfeitada em vista da proximidade das festas. As pessoas andavam apressadas à procura de presentes e artigos para a ocasião. A rua, a cidade, o estado, o país, o mundo, estavam em alvoroço. Um certo frenesi contaminava tudo e todos. Mas nada disso ele enxergou. O que ele descobriu naquela vitrine abalou-o profundamente. Aquilo era ele? Correu para frente da loja a fim de examinar a si mesmo. Não queria acreditar no que via. Aquele cabelo longo, embaraçado, e duro de imundo, era dele? Examinou a região em volta dos olhos. Percebeu, apesar da sujeira impregnada, olheiras escuras a rodeá-los. Descobriu um rosto magro, quase cadavérico. Soube-se dono de uma barba rala, longa e encardida. Apavorado, cobriu o rosto com as mãos. Assustou-se com o tamanho e a imundice das unhas. Examinou as mãos cuidadosamente enquanto as girava diante de seus olhos. Olhou para seu próprio corpo e o viu coberto por farrapos fedorentos. Aquilo que um dia foram sapatos, tivera o couro da parte da frente arrancado. As aberturas revelavam que as condições dos dedos dos pés eram as mesmas que a do resto do corpo. Sentiu as gotas mornas das lágrimas percorrerem seu rosto e umedecer sua barba. Nem se lembrava mais da última vez que havia chorado. Soltou um grito lamentoso. Sentou-se no meio-fio, ao lado de sua carroça, colocou os braços cruzados sobre os joelhos, apoio a cabeça nos braços, e chorou profusamente. Logo sua barba ficou umedecida de lágrimas, baba e coriza. Seu fiel amigo correu até ele e lambeu freneticamente uma de suas orelhas. Frustrado na tentativa fracassada de animar seu dono sentou-se ao seu lado e soltou um uivo triste. O semáforo abriu. Os motoristas que estavam na mesma fila da carroça acionaram as buzinas insistentemente. Os mais apressados tentaram passar para a faixa adjacente. O trânsito, que já era intenso, ficou caótico. Xingos, pragas, choro, buzinas, soluço, uivo, mãos socando o ar ameaçadoramente, palavrões, choro, maldiçoes, soluço, mãos batendo insistentemente nas latarias dos carros, uivo, buzinas, gritos, soluço, ameaças, choro, xingos, buzinas, uivo, choro, choro, choro, buzinas, buzinas, buzinas...
Roberto Policiano
1 Comments:
Ai Roberto...quantas vezes algumas pessoas se enxergam assim e no desanimo acabam cometendo inumeras besteiras. Será que seu personagem estava mesmo neste estado que você discreveu? Ou ele sentiu-se assim?
Você me fez pensar...
Lilian
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