Roberto Policiano

19 de mar. de 2007

Sufoco


Terça-feira, seis horas e quarenta e cinco minutos. O dia não começou muito bom para ele. Ao entrar no ônibus a primeira decepção – os bancos eram de plásticos maciços. Viajar por cerca de duas horas num daqueles bancos não seria nada fácil. Outro problema – só havia lugares vagos nos bancos do corredor. Resignou-se e escolheu um dos bancos, torcendo para que as coisas não piorassem. Parece que naquele dia todos estavam atrasados, pois, dentre em pouco, o ônibus estava entupido de gente. “É”, pensou, “nunca fui um bom torcedor”. Quinze minutos de viagem e já levara três cotoveladas na cabeça e duas pancadas de bolsa na testa. “O que pode me acontecer ainda?”, ironizou. A resposta veio cinco minutos depois, quando uma senhora tentou se encaixar ao seu lado. Aperta daqui, empurra de lá, sacode acolá até conseguir ficar literalmente socada num pequeno espaço que havia ali. Alguns minutos depois um passageiro tentou passar pelo corredor em direção à porta da saída. Ao tentar abrir espaço para passar empurrou a senhora para cima do infeliz, que teve sua cabeça parcialmente engolida pela barriga da companheira de viagem. Visivelmente zangada com o ocorrido, a mesma virou bruscamente a fim de dirigir alguns impropérios àquele que a empurrara. O movimento quase arrancou a orelha do nosso herói. Foi aí que a senhora reparou que uma amiga sua estava bem ao seu lado.
- Comadre, você por aqui?
- Eu mesma. Que ônibus medonho de apertado!
- É sempre assim, comadre, é sempre assim.
Terminado esse cumprimento inicial, a mulher voltou a sua posição atual, levando a orelha do pobre coitado junto.
- Eu ouvir dizer que seu filho mais velho vai se casar novamente. É verdade isso?
- Casar não casa não, comadre, mas já estão morando juntos, respondeu a outra, que virou para a amiga a fim de conversar. E a orelha foi levada com a barriga.
“Agora compreendo porque orelha não tem osso”, ainda conseguiu pensar o rapaz.
- É uma boa moça?
- Quisera eu que fosse, porque ele é meu filho. Mas a peste é uma jararaca, isso sim.
- Não me diga, mulher!
- Sabe aquela minha neta, filha desse meu filho?
- Claro que sei comadre, ela está bem?
- Como poderia estar com uma mulher daquela como madrasta? Está sofrendo mais do que a Gata Borralheira.
- Não fale isso não, minha amiga.
- Falo porque é verdade, comadre, falo porque é verdade. Além do mais é preguiçosa. Nunca vi ninguém mais preguiçosa do que aquela, vi nada! De vez em quando minha neta vai até em casa, porque eu ainda tenho o desprazer de ter aquela praga daninha morando na MINHA CASA, que construí na parte de trás do meu terreno COM MUITO SUOR, se é que a senhora quer saber. Pois bem, a coitadinha da minha neta vai até em casa para não morrer de fome, está me entendendo?
- E o seu filho?
- É um burro e não um homem. Mais de uma vez eu cheguei até ele e disse: “Meu filho, eu pensei que tivesse criado um homem, está me ouvindo? Mas meu coração de mãe corta de tristeza quando eu vejo que você se transformou em um burro! Um BURRO, está me ouvindo? Um BURRO, está me entendendo?” Falei isso sim, comadre, embora meu coração de mãe ficasse em pedaços, falei para ver se ele abria os olhos.
Enquanto ela falava de seus dissabores, fazia isso com tanta veemência, que toda sua raiva repercutia em sua barriga, resultando num constante chacoalhar da cabeça do infeliz.
- E o que ele fez, comadre?
- Teve o descaramento de esboçar um sorriso. Aquilo me ferveu tanto no sangue que eu saí de perto para não encher a cara dele de tapa, dizia furiosa, enquanto cuspia gotículas de saliva no azarado.
- E o seu outro filho, disse a outra no intuito de acalmar a amiga.
- O do meio?
- Esse mesmo.
- Não teve uma melhor sorte do que a do irmão. Casou com outra preguiçosa. Para a comadre ter uma idéia, uma vez ele apareceu com o meu neto lá em casa, coisa que ele fez poucas vezes, sabe-se lá o por quê. Foi uma emergência, porque filho ingrato só lembra da mãe em caso de emergência, se é que a comadre me entende. Pois bem, ele pegou o menino na escola e jogou lá em casa, porque foi isso mesmo o que ele fez, eu não vou mentir só porque ele é meu filho, e saiu apressado, dizendo que a sirigaita da sua mulher pegava meu neto mais tarde. O menino nem conhecia a avó direito, comadre, de tão pouco que ele me viu. Eu fiquei olhando para ele morrendo de amor e de dó ao mesmo tempo. O menino estava muito maltratado, isso sim. “Ele passa fome”, logo adivinhei. Era só pele e osso. Quase não se via seus olhinhos de tão fundo que estavam. Quando eu percebi isso, minha comadre, fui buscar o pote de biscoito. Assim que o menino viu aquilo estatelou tanto os olhos que ficou deste tamanho assim, ó. Ele esticou aqueles olhinhos cumpriiiiiiidos para o pote de biscoito e nem esperou que eu oferecesse, comadre, nem esperou que eu oferecesse. Arrancou o pote da minha mão e comeu tanto dos biscoitos que se percebia que ele passava fome. Aquilo doeu no coração bondoso dessa avó.
- E a sua filha caçula?
- É outra que só dá trabalho! A comadre está sabendo que... Meu ponto! Meu ponto está chegando. Preciso andar se não eu não desço. Vá lá em casa qualquer dia que eu conto tintim por tintim. Dá licença gente! Dá licença que vai passando uma senhora.
E saiu apressada, quase levando a orelha do rapaz. A dor foi tanta que ele levou a mão até ela para se certificar se ainda estava lá. Em seguida examinou sua mão achando que encontraria sangue. Foi só um susto.
“Amanhã vou até o ponto final para encontrar um lugar ao lado da janela, determinou”.
Fechou os olhos e fingiu dormir.
Roberto Policiano