Roberto Policiano

23 de abr. de 2009

A dona da banca



A primeira vez que a vi foi há mais de quarenta anos quando foi inaugurada a feira livre do bairro onde morava. Era uma jovem senhora com energia suficiente para cuidar com destreza de uma banca de utilidades domésticas, brinquedos, roupas, peças de fogão, geladeira, panela de pressão, equipamentos de limpeza e de jardinagem, para se mencionarem apenas alguns dos produtos comercializados por ela e, suponho, seu marido. Era uma correria incessante por cerca de oito horas ininterruptas. A banca deles estava entre aquelas que se destacavam na feira. Via-se que era uma banca nova que, como o casal, iniciava suas atividades no comércio na feira livre.
Há alguns dias, quando passei pela mesma feira, agora em outro endereço, deparei-me com a mulher novamente. Vi em seu semblante e em seu corpo as marcas deixadas pelo passar do tempo. Já não mantinha a mesma agilidade, evidentemente, mas continuava em seu posto como uma fiel guardiã. Sua banca envelheceu com ela. Nas mercadorias expostas, poucas mudanças, a não ser pela quantidade, bem menor agora. No fundo da banca seu marido exibia os mesmos efeitos no semblante e no corpo. A banca já não estava entre aquelas que chamavam atenção. Os clientes, percebia-se, havia minguado com a concorrência dos supermercados e lojas de bairros.
Num exercício de imaginação tento imaginar seu dia a dia que, creio, seja de seis dias de trabalho semanal com um dia de descanso. Só o fato de montar a banca ainda cedo na feira de depois desmontá-la à tarde já é um serviço e tanto, principalmente porque as mercadorias e a barraca são transportadas em um caminhão com carroceria aberta. Imagine colocar peça por peça nos seus devidos lugares na banca e depois recolocá-las em cima do caminhão! Não é difícil de acreditar que, após chegar a casa, já esgotada com o trabalho para ganhar o sustento, ainda teria que encarar os serviços domésticos, levando à conclusão que sua jornada de trabalho ultrapasse doze horas por dia! Para não perder a mania que eu trago comigo desde que eu era desse tamanhinho assim, ó, fiz um pequeno cálculo e cheguei à conclusão que ela trabalhou em cerca de 13.300 (treze mil e trezentas) feiras!
Isto me fez refletir. Estamos, cada um em sua rotina, sendo consumidos diariamente, sei lá eu a troco de quê? No fundo não passamos de mercadorias expostas nas prateleiras do sistema!


Roberto Policiano

3 Comments:

At 8:36 AM, Anonymous Ana said...

Um belo texto que conduz o leitor a uma pertinente reflexão. Quem somos? O que somos? O que querem que sejamos?
Bom, talvez nos queiram joguetes, peças de xadrês que se manipulam sem olhar a meios, bonecos conduzidos por cordelinhos mais ou menos invisíveis... Há, porém, sempre alguém que resiste, alguém que diz não, alguém que teima em em não ser somente um produto exposto.
Vivemos tempos difíceis: tempo de crise; tempo de desemprego; tempo de fome e de pobreza - quantas vezes envergonhada. Há que dar um novo sentido à vida e o exemplo deveria começar pelos políticos e poderosos que, cegos de ambição, sistematicamente ignoram os mais fracos.
Que fazer com os idosos? Com os reformados? Com os jovens cada vez mais sem alternativas, sem futuro?
Falta generosidade. Falta solidariedade. Falta interiorizar a noção de que o Homem não pode viver em compartimentos estanques que a uns oferecem o "paraíso" e à maioria o "inferno".
Não basta estar, é preciso saber partilhar.

Parabéns, Roberto. De vez em quando é bom deixarmos de olhar só para o nosso umbigo.

 
At 9:34 AM, Blogger Unknown said...

uau!!!
essa é realmente um reflexão que, já tem algum tempo , entrou em minha cabeça e eu não consigo achar uma resposta e nem sequer sair desse ritmo em que vivemos...
ando sempre a me perguntar: " por que ( ou para quê) nós corremos tanto e gastamos nossa vida como uma obrigação? a vida é para ser vivida e não somente sobrevivida!!!
esse texto me faz voltar àquele outro " de pai para filho -de filho para pai" que tambem gostei muuuuuuuuuuuuuuuuito
bjs

 
At 9:47 AM, Anonymous Roberto Policiano said...

Reflexão! Esta é a palavra correta, como disse no texto e foi frisada tanto pela Ana como pela Thais. A reflexão pode nos
'acordar' tanto para perceber como nós mesmos estamos vivendo nossa vida, como destacou a Thais, ou como os outros estão influenciando nossas vidas, conforme alertou a Ana. Que mais pessoas sejam levadas a refletir e, quem sabe, apontar um caminho melhor. Obrigado pelos comentários, Ana e Thais. Um grande abraço!

 

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