Roberto Policiano

31 de mai. de 2010

Lembranças



Não posso mais sentir teu cheiro,

escultar o pulsar do teu coração,

afagar com ternura os teus cabelos,

estremecer com o toque de tuas mãos.


Já não provo a doçura dos teus beijos,

nem me afogo no aperto dos teus braços.

Não ouço mais os teus sussurros meigos,

nem encontro em teu colo o meu regaço.


Não sinto mais a alegria da tua presença,

nem assisto a beleza de teu sorriso,

que envolvia a minha vida de emoção.

Resta-me, porém, guardada a sete chaves,

a lembrança dos momentos que foram meus,

e foram teus, portanto, nossos.


Compenso, com elas, a tua ausência,

usando-as para visitar o paraíso,

enquanto ouço, com ternura, nossa canção.

E vou tornando a perda mais suave,

buscando, no que já fomos, o meu alento,

sem mágoas, nem tristezas, nem remorsos.


Roberto Policiano

24 de mai. de 2010

Pingo



Cinco horas da manhã, como fazia todos os dias, entrou no banho. O jato de água morna em sua cabeça deu-lhe uma sensação de bem estar. Sorriu, mas sua alegria durou pouco. Um pingo de água gelada bateu em sua testa. Depois um segundo e um terceiro. E para seu desgoto, a cada três segundos um pingo de água gelada seguia o mesmo trajeto. Tomou banho o mais rápido que pode a fim de evitar aquela sensação desagradável. O bom humor com que acordara se dissipou com o ocorrido. Preparou-se para o trabalho com a cara fechada e um bico desse tamanho. Nem o trânsito fluindo velozmente foi suficiente para acalmar seus ânimos.
ao chegar ao escritório teme uma recepção amigável, o que retribuiu da mesma forma. Enquanto se preparava para mais um dia de rotina, o incidente da manhã voltou a tomar conta de seus pensamentos, mas não por muito tempo. De repente pôs-se a refletir sobre o acontecido e a sua reação. Havia um jato de água morna que caia do chuveiro, porém um - apenas um - pingo de água gelada teve o poder de neutralizar a torrende de água morna, a ponto de lhe causar aborrecimento. Se a sua concentração permanecente na abundância de água com temperatura agradável, raciocionou, aquele pingo não causaria nenhum efeito, mas quem consegue fazer isso? Acreditava que qualquer pessoa, vivendo em que cidade fosse do mundo, se incomodaria com aquele único pingo de água gelada.
Sorriu - agora já conseguia sorrir - ao lembrar de sua reação. 'Quantas vezes', filosofou, 'não cometemos esse mesmo erro na vida?' Temos a tendência de focalizar as coisas desagradáveis enquanto uma infinidade de coisas boas estão acontecendo em nossa vida. É como ficar cegos e surdos por todas estas coisas para dar toda a atenção e valor para algo que, na maioria das vezes, nem é tão importante assim. Não nos contentamos com noventa e nove por cento, queremos tudo, mesmo sabendo que quase nunca é possível o tudo, se é que alguma vez alguém consiga alcançá-lo. Se tão somente parássemos para pensar! Determinou a si mesmo dar atenção a isso.
Trinta minutos depois de iniciar o seu trabalho a copeira entrou com o seu lanche. Como sempre estava no capricho. Um delicioso croissant ainda quentinho, salpicado de queijo parmesão tostado e um magnífico recheio, que seria regado com u suco natural de laranja. Deu a primeira mordida no lanche e descobriu que o sabor estava melhor do que a aparência. Já o suco de laranja decepcionou, pois não estava gelado. Quis se estressar, mas lembrou do pingo gelado.
- 'Concentre-se no lanche', disse para si mesmo, e continuou, 'se o suco não está gelado suficientemente é só colocar gelo.'
Pegou o telefone a fim de licar para a copa, mas ouviu o toque de batida na porta.
- Pode entrar.
- Desculpe-me, mas esqueci o gelo do suco. Aqui está ele.
Depois de acertar a temperatura dso suco tomou um bocado, e, antes de dar outra mordida no lanche, fez questão de prestar atenção à sensação agradável da bebida gelada descendo em direção ao estômago.
- Foi tão simples a solução, pensou, porque não fazemos isso sempre?


Roberto Policiano

10 de mai. de 2010

Exercício matinal



Cinco e meia da manhã. Amadheus já está em posição para seu exercício matinal. Amadheus Faktuz Nakagimura, para não se confundir com qualquer outro Amadheus. Com as pernas esticadas sobre o colchonete, tornozelo grudado a tornozelo, o corpo ereto e firme, em ângulo de noventa graus com as pernas, os braços juntos ao corpo. Depois de se concentrar com os olhos fechados, Amadheus gradativa e lentamente separa os braços do corpo estendendo-os para fora e para o alto até os dois se encontrarem acima da cabeça do atleta, onde palma se encontra com palma e dedos com dedos num ajuste perfeito. Depois que os dedos são entrelaçados sem pressa, um movimento rápido leva as mãos para frente do corpo e, numa ação precisa, todos os dedos das mãos estalam ao mesmo tempo, fazendo um só ruído: treeeeeecccccc. Com a palma da mão direita sobre a testa e a palma da outra mão no queixo, o homem respira fundo, segurou o ar nos pulmões e, movimentando as mãos em sentido contrário, estalou o pescoço: TROC. As mãos com os dedos entrelaçados são colocadas na nuca e, num movimento para frente, a cabeça é levada até os joelhos:
trec, troc,
..............tric,
.................trac,
....................plec,
........................truc,
..............................cras,
.................................cras, crec,
............................................plic. (Plic? Ai! Ui! Isso deve ter doído!)
Todas as juntas dos anéis da coluna vertebral de Amadheus estalam numa sincronia no mínino inusitada. Com as mãos fechadas nosso herói leva os braços violentamente para trás: TROC! TROC! Ambos os ombros são estalados. De bruços no colchonete o atleta levanta bem as duas pernas e os dois braços até cada mão conseguir segurar as pontas dos pés. O homem ficou esférico nessa posição. Depois de se concentrar e fazer uma careta horrível, Amadheus puxou os pés com as mãos ao mesmo tempo em que puxava as mãos com os pés:
..............................Clec!
.......................Trec!
................Plec!
........Clac!
Trac!
Plac!
Troc!
.......Pluc!
..............Cluc!
.....................Strac!
.............................Ploc!
Creio que todas as juntas estalaram nessa! Após esta manobra radical nosso homem ficou largado no colchonete feito uma flácida geléia humana. Pareceu o fim, mas só pareceu. Numa ação rápida o atleta ficou com as palmas das mãos e as solas do pé sustentando o corpo, depois, como um gato, deu um pulo ao mesmo tempo em que jogava as pernas, os braços e a cabeça para trás:
Trac, trec, troc, ploc, clac, cloc.
Ombros, pescoço, joelhos, cotovelos, estalaram-se todos com este movimento.
Terminado o exercício matinal, Amadheus dirigiu-se para o banho.
Às noves horas em ponto já estava sentado diante de sua escrivaninha e pronto para mais um dia árduo de trabalho, cujo esforço físico maior consiste em movimentar o mouse em várias direções durante o dia.
No último sábado, enquanto fazia compras no supermercado perto de sua casa, Amadheus foi pegar um vidro de 187 gramas de alcaparras, mas não prestou atenção à sua postura o que resultou numa luxação em seu antebraço esquerdo. A dor foi tão intensa que o grito do acidentado chamou a atenção de todos no recinto. Chegou ao hospital berrando de dor a ponto de colocar a equipe de primeiros socorros de prontidão. Tomou uma injeção de analgésico com antiinflamatório e teve seu braço esquerdo imobilizado.
Domingo de manhã qualquer outra criatura da face da terra ficaria debaixo do seu cobertor quentinho e se movimentaria o mínimo possível para evitar a dor, mas não Amadheus Faktuz Nakagimura. Pontualmente às cinco e meia da manhã mantinha sua posição ereta fazendo um ângulo de noventa graus com as pernas esticadas e encostadas uma à outra. Fechou os olhos, respirou fundo e...
Pressinto que a sessão de hoje será dolorida. Vem! Saiamos devagarzinho para não incomodar o atleta. Não pratiquemos a crueldade de assistir seus sofrimentos. Vamos embora!


Roberto Policiano

3 de mai. de 2010

Epoché




Em se tratando de fenomenologia,
usarei a poiesis para falar sobre nós.
Queria que tu fosses minha nóese,
mas
awareness
que só podes ser minha nóema.
Esse erlebnis tem resultado
em eclater meu coração.
Porém, quando vou atrás do eidos,
descubro que entre eu e tu há uma holística.
Nessa redução eidética
descobri que entre nós a mitwelt é intensa,
o que me obrigou a dar um ‘passo atrás’
para uma eigenwelt bem séria.
Como isso foi acontecer conosco?
É preciso uma ontologia
para achar o sinn deste fenômeno.
Acho que, por ser um dasein,
ao me relacionar com o welt
muitas vezes minha ‘intuição originária’
impede qualquer reflexão.
É preciso achar a essência de tudo,
e, visto que a consciência é sempre
consciência de alguma coisa’,
será necessária uma hermenêutica
a fim de que, após analisar o
cenário dos sentidos dos personagens’,
tentar fechar esta Gestalt
da maneira mais suave possível.


Poiesis – linguagem poética
nóese, - real
awareness – dar-se conta
nóema - imaginário
erlebnis – Vivido – o que estou vivendo agora
eclater - explosão
eidos, - essênsia
mitwelt – Relação de um dasein com outro dasein
eigenwelt. – relação do dasein consigo mesmo
sinn - sentido
dasein, - ser-aí (pessoa)
welt - mundo
Gestalt – forma? (difícil tradução)


Roberto Policiano