Roberto Policiano

18 de jun. de 2012

Pingo


Cinco horas da manhã, como fazia todos os dias, entrou no banho. O jato de água morna em sua cabeça deu-lhe uma sensação de bem estar. Sorriu, mas sua alegria durou pouco. Um pingo de água gelada bateu em sua testa. Depois um segundo e um terceiro. E para seu desgosto, a cada três segundos um pingo de água gelada seguia o mesmo trajeto. Tomou banho o mais rápido que pode a fim de evitar aquela sensação desagradável. O bom humor com que acordara se dissipou com o ocorrido. Preparou-se para o trabalho com a cara fechada e um bico desse tamanho. Nem o trânsito fluindo velozmente foi suficiente para acalmar seus ânimos.
Ao chegar ao escritório teme uma recepção amigável, o que retribuiu da mesma forma. Enquanto se preparava para mais um dia de rotina, o incidente da manhã voltou a tomar conta de seus pensamentos, mas não por muito tempo. De repente pôs-se a refletir sobre o acontecido e a sua reação. Havia um jato de água morna que caia do chuveiro, porém um - apenas um - pingo de água gelada teve o poder de neutralizar a torrente de água morna, a ponto de lhe causar aborrecimento. Se a sua concentração permanecesse na abundância de água com temperatura agradável, raciocinou, aquele pingo não causaria nenhum efeito, mas quem consegue fazer isso? Acreditava que qualquer pessoa, vivendo em que cidade fosse do mundo, se incomodaria com aquele único pingo de água gelada.
Sorriu - agora já conseguia sorrir - ao lembrar-se de sua reação. 'Quantas vezes', filosofou, 'não cometemos esse mesmo erro na vida?' Temos a tendência de focalizar as coisas desagradáveis enquanto uma infinidade de coisas boas está acontecendo em nossa vida. É como ficar cegos e surdos por todas estas coisas para dar toda a atenção e valor para algo que, na maioria das vezes, nem é tão importante assim. Não nos contentamos com noventa e nove por cento, queremos tudo, mesmo sabendo que quase nunca é possível o tudo, se é que alguma vez alguém consiga alcançá-lo. Se tão somente parássemos para pensar! Determinou a si mesmo dar atenção a isso.
Trinta minutos depois de iniciar o seu trabalho a copeira entrou com o seu lanche. Como sempre estava no capricho. Um delicioso croissant ainda quentinho, salpicado de queijo parmesão tostado e um magnífico recheio, que seria regado com u suco natural de laranja. Deu a primeira mordida no lanche e descobriu que o sabor estava melhor do que a aparência. Já o suco de laranja decepcionou, pois não estava gelado. Quis se estressar, mas lembrou do pingo gelado.
- 'Concentre-se no lanche', disse para si mesmo, e continuou, 'se o suco não está gelado suficientemente é só colocar gelo'.
Pegou o telefone a fim de ligar para a copa, mas ouviu o toque de batida na porta.
- Pode entrar.
- Desculpe-me, mas esqueci do gelo do suco. Aqui está ele.
Depois de acertar a temperatura do suco tomou um bocado, e, antes de dar outra mordida no lanche, fez questão de prestar atenção à sensação agradável da bebida gelada descendo em direção ao estômago.
- Foi tão simples a solução, pensou, porque não fazemos isso sempre?

Roberto Policiano


12 de jun. de 2012

Roxo


Eu queria vermelho,



Você preferia azul.


Cada um cedeu um pouco


E criamos o roxo.


Depois de muito tempo,


Ao revermos nosso trajeto,


Percebemos que a matiz roxa


Variava do quase azul


Ao perto do vermelho,


Pois, quando um não estava bem,


O outro abria mão de si.


Compreendemos, no entanto,


Que eu ainda era vermelho


E você permanecia azul,


Pois a união de dois


Não elimina o individual,


Só cria um novo matiz.


Então, a fim de surpreendê-la,


Cheguei a casa vestindo uma camisa azul.


Emocionei-me ao vê-la sorridente,


De braços abertos,


Usando uma linda blusa vermelha!




1 de jun. de 2012


Assim que entrou no consultório do psicólogo se jogou no divã e falou:
- Meu mundo ruiu!
- O que aconteceu que o faz pensar assim?
- Eu sei que provoquei isso, mas o castigo foi além do meu erro.
- Quer falar sobre isso?
- Eu devia ter feito o serviço assim que o gerente mandou, mas sabe quando você está terminando um trabalho e não quer interrompê-lo? Foi o que aconteceu. Eu sabia que em menos de cinco minutos concluiria o que estava fazendo, assim, peguei o documento e coloquei-o em cima do computador a fim de cumprir a ordem do gerente logo em seguida, porém acabei me esquecendo dele. Estava tão abarrotado de serviço que iniciei outro imediatamente. Depois veio o segundo, o terceiro, o quarto... No final do expediente, quanto fui cobrado da tarefa pelo chefe, lembrei da ordem dada. É verdade que eu tratei de providenciar o serviço logo em seguida, ficando além do meu horário de trabalho para reparar meu erro, mas não teve jeito. No dia seguinte, ao chegar à minha mesa, vi o bilhete do gerente me intimando a comparecer ao seu gabinete. Dez minutos depois, quando saí com a cara deste tamanho, o Cleonor, um colega de trabalho, depois de dar umas batidinhas em meu ombro, disse-me, junto com um sorriso sarcástico: “Que carraspana que você levou hein?”. Aquilo acabou comigo! Depois dessa nunca mais serei o mesmo.
- Por que você acha que será assim?
- Você não escutou o que eu disse? Eu levei uma carraspana! Uma CARRASPANA! Uma CARRASPANA, ouviu? CAR-RAS-PA-NA, entendeu agora?
- Você deve ter ficado muito chateado com isso!
- Chateado? O mundo acabou para mim! Quem mais, no mundo, leva uma carraspana? Eu fui o último da espécie a ser carraspanado. Quando eu me olho no espelho parece que vejo em minha testa um carimbo desse tamanho com os seguintes dizeres: “O último carraspanado do mundo”. Não, eu não merecia isso. Não se deve sair por aí dando carraspana nas pessoas. Isso é muito ultrajante, principalmente nos tempos modernos. Tudo bem que o gerente teve razão em ficar chateado comigo, mas ele exagerou na dose. Ele poderia usar de um expediente menos traumático. Que ele fosse camarada e me desse apenas uma admoestação. Garanto que saberia responder à altura. Uma censura também estaria de bom tamanho. Poderia me recriminar e aplicar-me uma reprimenda. Se ele estivesse num dia ruim poderia ser mais rude e ralhar comigo ou me dar uma bronca, um pito ou um sermão. Poderia até suportar, embora chateado um reproche dele. Na pior das hipóteses, engoliria, humilhado, e com um bico deste tamanho, uma exprobração. Mas, ao me dar uma carraspana ele ultrapassou todos os limites! Ele simplesmente enterrou o meu futuro. Estou acabado, eliminado, é o fim.
- Fala-me por que você acha que isso é assim.
- Porque esta é a coisa mais óbvia do mundo! Acompanhe meu raciocínio - Estou numa entrevista para um emprego; preencho todos os requisitos para o cargo; tenho experiência suficiente para conduzir bem os trabalhos; respondo todas as perguntas do entrevistador a contento; mostro equilíbrio emocional adequado para o cargo; tudo parece caminhar bem até que ele fica sabendo, talvez através da minha íris, ou pelo leve levantar de minhas sobrancelhas, ou um minúsculo repuxar dos músculos de minha testa, ou sei lá o que mais, que eu fui o último a levar uma carraspana e pronto, lá se foi a minha oportunidade de emprego. Ou então que eu tenha a sorte de encontrar o grande amor da minha vida e tudo caminha bem, indicando um final feliz, até que uma amiga dela, levando-a num canto, diz em seus ouvidos que ela sabe - de fonte extremamente segura - que sou o tal que levou a última carraspana e pronto, tudo acabado. Portanto, não há nenhum exagero quando digo que estou arruinado.
- Bem, se seu gerente foi tão cruel com você, quem garante que ele não repita este ato vil com outro? Deste modo você deixará de ser o último a levar uma carraspana.
- Não, doutor, ele não terá coragem para tanta maldade. Eu pressenti em seus olhos como ele relutou em aplicar em mim este golpe baixo. Eu tenho absoluta certeza que ele não terá coragem de repetir esta grande maldade com outra pessoa. Percebi também, um leve sorriso sarcástico que, traduzido, quis dizer: “serei o último a aplicar uma carraspana em alguém. Nunca mais alguém será capaz de repetir uma crueldade desta”. Sim, pode acreditar, ele se sentiu o último carrascanador do planeta. Nunca vi ninguém ter tanto ódio no coração como ele. Onde já se viu resgatar uma prática tão odienta do baú e usá-la, sem dó, em uma pessoa como eu?
A Terapia inteira girou em torno do mesmo assunto.
- Bem, disse o que eu tinha que dizer. Preciso ir agora. Na semana que vem eu volto. Até lá.
- Qualquer coisa é só ligar. Você sabe que sempre pode contar comigo.
Depois que o psicólogo levou o cliente até a porta e despediu-se dele, voltou para o consultório e, deixando-se cair no divã, pensou desolado:
- Que azar o meu! Devo ser o último psicólogo do mundo que tratará de alguém desolado por levar uma carraspana. Isso levará não menos do que duzentas sessões!

Roberto Policiano