Roberto Policiano

26 de jul. de 2009

Saturação



A noite não tardaria a chegar. Thomaz caminha em direção à sua casa, como tem feito nos últimos quinze anos. Como trabalhador da construção civil, cumpre sua jornada das sete horas da manhã até as dezesseis horas. Às onze horas vai, junto com seus companheiros de serviço, ao refeitório improvisado no canteiro de obras a fim de almoçar. Depois de esperar alguns minutos na fila do marmiteiro, pega sua marmita e se dirige para a última mesa, onde ele e os amigos conversam enquanto comem. Nessa tarde, porém, Thomaz parece alheio ao que acontece em sua volta. Não percebe o movimento das pessoas, não vê quando um amigo lhe acena na porta do bar onde costuma tomar um trago após o expediente, não ouve que sua música preferida está tocando na loja de CDs, não percebe o olhar inquieto da Catarina, balconista da padaria do Vieira, que sempre o espreita quando passa por lá. Thomaz não tem pressa, como é habitual às tardes de quarta-feira, dia em que se reúne com os amigos na casa do Barbosa, um amigo de infância, para jogar truco. Alguma coisa está diferente em Thomaz, um jovem senhor geralmente muito vivaz. O andar mecânico não é o andar de Thomaz. O olhar sem brilho que carrega não condiz com os seus costumeiros olhos brilhantes. A sisudez que desenfeita o seu rosto nunca fora vista antes pelos seus amigos. A silueta que perambula pelas calçadas nem de longe lembra o animado trabalhador com o andar cheio de ginga, arrancando risos por onde quer que vá, mexendo com um, animando outro, provocando um terceiro. Apesar do serviço pesado suportado durante todo esse tempo, jamais reclamava, antes, era a alegria em pessoa. Coisa boa, muito boa mesmo, era estar no mesmo ambiente em que ele estava. Era sempre animação, era sempre alegria, era sempre otimismo. Não, o Thomaz não está bem. Algo está errado com ele, mas o quê? Esse era o tema da conversa dos amigos que o seguia de longe com os olhos. Até que Bento, o mais experiente da turma, arriscou um palpite:
- É saturação, disse em poucas palavras, como sempre fazia.
- Saturação? Como assim? questionou Berimbau, o mais novo da turma.
- É saturação, confirmou Bento, e calou-se.
Todos esperaram pacientemente a explicação do mais sábio do canteiro de obras, afinal, quem já trabalhara ininterruptamente por quarenta anos em construção devia saber o que estava dizendo. Conhecendo o Bento, sabiam que a resposta viria alguns minutos de espera. E veio. Balançando o indicador compassadamente disse convicto:
- É saturação! Isso já aconteceu comigo mais de uma vez e já aconteceu com muitos companheiros. De tanto trabalhar com pó e barulho o dia inteiro, chega um momento em que a gente satura, disse ele, parando para tomar fôlego, e, depois de um longo suspiro, continuou:
- O dia chega, para alguns mais cedo, para os mais fortes mais tarde, em que acontece a saturação!
- E o que é saturação? insistiu Berimbau.
- Observem o Thomaz, disse Bento apontando para o amigo, parece que não ouve nem vê coisa alguma. É como se ele estivesse com os olhos cheios de pó e os ouvidos cheios de ruído. Sei muito bem o que é isso, disse ele balançando a cabeça afirmativamente, é saturação!
- É saturação! Murmuraram todos pensativos enquanto repetiam o gesto do Bento.


Roberto Policiano

19 de jul. de 2009

É preciso regar


Se não regar

A planta seca.

Faltando amor

Nada mais resta.


Roberto Policiano

12 de jul. de 2009

Auditoria



Domingo à tarde. Chovia torrencialmente. Desistiu de sair, mas o que fazer? Sentou-se na poltrona da sala de estar; estirou as pernas; esticou os braços longa e demoradamente; bocejou à vontade; largou o corpo relaxado na poltrona e deixou-se ficar assim por vários minutos. Sentiu a necessidade de fazer uma auditoria de sua vida. Tirou o baú do recôndito de seu cérebro; eliminou as teias de aranha; espanou a tampa a fim de se livrar do pó e, com o coração acelerado, abriu o móvel bem devagar. Resolveu contar as lágrimas estocadas. Foi um trabalho doloroso e corajoso. Ao término da contabilidade teve uma triste surpresa – havia mais lágrimas do que as que derramara. Cruzou as pernas, apoiou um dos cotovelos no braço da poltrona, pousou o queixo na mão do braço apoiado, e deixou-se levar em pensamentos. Os olhos, tristes e embaçados, logo ficaram cheios de água, acrescentando lágrimas à sua coleção, pois concluíra que as excedentes foram as lágrimas que causara em outrem. Refletiu um longo tempo sobre a descoberta. Tentou reviver cada situação onde as lágrimas nasceram e participou do longo jogo de auto-absolvição e auto-condenação. Suspirou profunda e demoradamente e tomou uma resolução – a mais significativa de sua vida: daquele dia em diante se esforçaria para não acrescentar nenhuma lágrima alheia ao seu baú. Objetivara que, no futuro, ao fazer nova auditoria, se encontra-se algumas lágrimas adicionais, que sejam apenas as suas!


Roberto Policiano

5 de jul. de 2009

Passeio dominical



Lá vem seu Narciso
Em passiva marcha
Com passo preciso
Deixando sua marca.


Com luva, cartola,
Bengala na mão.
Feliz cantarola
Alegre canção.


Vem todo arrumado
Com roupa elegante
De fino tecido.


Vem todo aprumado
Com jeito galante
Sem nunca ter sido.


Roberto Policiano