SABIÁ
Olhou com tristeza para ela. Sabia que não era a mesma coisa. Tanta emoção, tanto amor, tanta alegria... e, por fim, nada. Não foi de agora que notou isso. Há muito percebe um afastamento, um gelo, um ‘chega pra lá’. Tentou recuperar o que era antes, falou com ela, mas ela dizia que estava tudo bem, não era para se preocupar. Alegava a correria da vida, o estresse, as cobranças do trabalho, como causa desse aparente desinteresse. Aqueles clichês que todos usam para se esquivar de uma reflexão maior. Mas ele sabia, sentia, percebia, que não era realmente aquilo. Tentou a recuperação por si mesmo. Fez tudo o que leu nas ‘cartilhas’: surpreendeu com flores, presentes, viagens curtas de fins de semana. – A rotina não permitia uma viagem maior. - Foram a jantares especiais, a lugares onde os dois, à época do namoro, gostavam de estar. Colocava as músicas preferidas deles, providenciou jantares em casa à luz de velas, champanhe, aquele clima romântico, e tudo o mais envolvido no assunto. Resolveu namorá-la novamente. Fez questão de se entregar. “X” vezes por semana porque lera, em algum manual, que tinha que ser assim. Nada funcionou! Percebeu que ela até se esforçou, se envolveu, entrou no clima, mas sentia que era tudo superficial, para agradá-lo. Não, não era isso o que ele queria.
Esperava vê-la como era antes, alegre, sorridente, cheia de vida. Queria ver seus olhos brilharem como a mesma intensidade com que brilhavam antes. Não deu certo. A distância entre os dois tornava-se cada vez maior.
Certa noite, ao chegar à casa, encontrou-a arrumando suas coisas, já estava quase tudo pronto, pois ela pretendia sair antes que ele chegasse. Levou um susto ao vê-lo, mas respirou fundo e disse-lhe francamente que não era possível continuar. Ele ainda tentou dissuadi-la, mas ela estava resoluta. Derrotado, deixou-se ficar sentado no sofá enquanto ela terminava de recolher suas coisas. Estava completamente desesperado, mas se conteve. Levantou, serviu-se de uma dose de bebida, colocou gelo, sentou em sua poltrona, e ficou refletindo sobre a situação. Sabia que a amava com a mesma intensidade de antes. Refletiu sobre o que poderia ter contribuído para as coisas chegarem ao ponto em que estavam. Em suas reflexões viajou até sua meninice. Lembrou de um sabiá que ganhara de um tio. A ave ainda era um pequeno filhote. Emocionado comprou uma imensa gaiola com suas economias, reservada com muito esforço para comprar uma bicicleta, mas o carinho com o pássaro era tanto, que fez questão de presenteá-lo com uma bela casa. Foi à casa de pássaros e interou-se de todos os procedimentos para manter a avezinha bem cuidada. Comprou várias rações, para diferentes fins, a fim de que o sabiá crescesse bem e, no tempo devido, cantasse bonito. Namorou a sua ave e literalmente viu o crescimento dela centímetro por centímetro.
Depois de muito tempo, estando já o pássaro na fase adulta, colocou a gaiola pendurada numa árvore, onde fazia uma agradável sombra, que ela sabia era apreciada pela ave, sentou-se numa pedra, e ficou assistindo o sabiá viver sua vida por longas horas. Foi então que percebeu a insignificância que era a vida daquela criatura. Depois de empanturrar-se com os diversos grãos que havia à sua disposição e matar a sede na água fresca do bebedouro, não sobrava alternativa ao pássaro a não ser se empoleirar e passar o resto do dia ali. Para quebrar o tédio a ave, periodicamente, trocava de poleiro ou dava pequenos pulos no assoalho da gaiola. Seu canto, descobriu o garoto, era mais uma canção fúnebre, um pedido de socorro, ou a chamada da morte para tirá-lo daquela vida sem graça. Estava o garoto ‘descobrindo’ a vida miserável que impusera ao seu animal de estimação, embora nas melhores das intenções e cheio de amor e carinho, quando, de repente, um casal de pássaros pousou num dos galhos da árvore. Como eles cantavam diferentes! Nisso seu sabiá soltou seu canto, e o menino percebeu que ele pedia, melhor que isso, implorava, para ser solto. ‘Mas se eu o soltar ele morre’, pensou logo o menino em defesa, não da ave, mas dele mesmo. ‘Ele foi acostumado a viver na gaiola, não sabe buscar a sua própria comida, não sabe onde encontrar água e, indefeso como ele é, pois provavelmente nem sabe voar direito, será fatalmente abocanhado por um gato da vizinhança’. Todas as desculpas que se fazem para justificar a prisão do pássaro o menino fez, mas, como ele era apenas um garoto, não se convenceu disso. Ele já sabia o que teria de fazer e, por isso mesmo, começou a chorar profusamente, pois sabia que ficaria sem a ave ao lhe dar a liberdade. Antes porém, preparou algumas estratégias. Arrumou várias pequenas vasilhas e as encheu, ou de água ou de alimento, espalhando-as estrategicamente em todos os espaços possíveis, inclusive em alguns dos galhos da árvore, bem junto ao tronco, para não cair. Daí então, com as mãos tremulantes e aos soluços, abriu a portinhola da gaiola. Sentiu-se aliviado quando a ave não saiu. Quis até sorrir, mas sabia que deveria dar um tempo para o sabiá perceber que estava livre. Ademais, deveria sair de perto da gaiola, pois sua presença impedia que a ave ganhasse liberdade. Assim, arrumou um pequeno galho, escorou a portinhola da gaiola para que ela permanecesse aberta, colocou-a pendurada no tronco e saiu devagarzinho, indo sentar numa pedra que estava a certa distância, para, de lá, poder observar o resultado. Cinco minutos depois o pássaro, depois de hesitar um pouco junto à saída, ganhou o céu e a liberdade, e o menino, num misto de tristeza e alegria, desatou a chorar.
Por três dias o garoto não arredou pé do lugar na esperança de rever o seu sabiá. Só comeu e bebeu o que lhe era levado na pedra onde ficou sentado. O pássaro não voltou para comer o alimento nem para beber a água, que era trocada duas vezes ao dia pelo menino. Quinze dias depois, o garoto, já consolado pela ‘ingratidão’ da ave, brincava com a sua irmãzinha no quintal quando, de repente, a garotinha apontou para a árvore e disse:
- Ele voltou. Olha! Ele tem uma namorada!
E o menino, não se contendo de contente, sorriu e saltitou como nunca fizera até então. E a ave, ou melhor, as aves, entendendo, talvez, a alegria do garoto, fizeram várias acrobacias no ar. Depois, exaustas, pousaram novamente no galho, e para a surpresa do menino e sua irmãzinha, o sabiá entoou o mais lindo canto que alguém já ouviu. A menininha, inteligente como ela só, puxou a camisa do irmão e saiu com essa:
- Ele veio dizer pra nós que se casou e está muito feliz!
O garoto, concordando com a irmãzinha, sorria enquanto balançava a cabeça afirmativamente.
De súbito ele se levantou da poltrona, tomou um pouco da bebida, e ficou refletindo porque ele se lembrou daquela história. De repente ligou os fatos. Sabia que o mais importante era a liberdade. Não adianta uma imensa gaiola, farta de comida e bebida, mesmo que providenciadas com muito amor e carinho, se o tédio for o sentimento dominante.
Na partida, assim que o carro se distanciou, chorou tal qual um menino que perdeu seu sabiá. Ficou três dias sem comer nem beber. Solicitou algumas folgas a que tinha direito na empresa e, descompromissado com a sociedade, não tomou banho, não penteou o cabelo, não escovou os dentes, não tirou o pijama, e nem saiu de casa. A dor da perda foi grande, mas, ao mesmo tempo, amenizada por saber que o brilho voltaria a habitar nos olhos que ele tanto amava. Sabia que o sorriso que o encantava tanto seria presenciado novamente, não por ele, evidentemente, mas isso era o menos importante.
Dois meses se passaram. A dor, embora ainda presente, já não doía tanto. E ela como estava? Ficou curioso de saber. Sabia de seus lugares prediletos, assim, mesmo lutando consigo mesmo, resolveu descobrir. Depois de uma semana de plantão conseguiu vê-la. Estava radiante! Mesmo de longe percebeu o brilho em seus olhos e o seu sorriso lindo. Não era necessário mais nada. Sentindo-se satisfeito por vê-la feliz, tratou de sair discretamente sem chamar a atenção.
No dia seguinte, sábado, no período da tarde, foi dar uma volta na praça da cidade. Quanto tempo não passava por ali! Resolveu sentar-se num dos bancos do local. Não passou nem cinco minutos quando sua atenção foi desviada para uma imensa árvore à sua direita. Um sabiá pousou delicadamente num dos galhos e, depois de bater as asas, assobiou uma linda canção. Era exatamente a canção que ouvira quando criança. Nada, nem ninguém, conseguiram desviar a atenção dele daquele pássaro.Quando, de volta para casa, refletia sobre tudo, teve a sensação de que o sabiá, ainda se sentindo em débito com ele, voltou para ajudá-lo naquele momento de perda. Algumas lágrimas rolaram em seu rosto. Não eram de tristeza, tampouco de alegria. Talvez fosse de consolo. Mas uma coisa é certa – seu coração pulsava de pura emoção!
Esperava vê-la como era antes, alegre, sorridente, cheia de vida. Queria ver seus olhos brilharem como a mesma intensidade com que brilhavam antes. Não deu certo. A distância entre os dois tornava-se cada vez maior.
Certa noite, ao chegar à casa, encontrou-a arrumando suas coisas, já estava quase tudo pronto, pois ela pretendia sair antes que ele chegasse. Levou um susto ao vê-lo, mas respirou fundo e disse-lhe francamente que não era possível continuar. Ele ainda tentou dissuadi-la, mas ela estava resoluta. Derrotado, deixou-se ficar sentado no sofá enquanto ela terminava de recolher suas coisas. Estava completamente desesperado, mas se conteve. Levantou, serviu-se de uma dose de bebida, colocou gelo, sentou em sua poltrona, e ficou refletindo sobre a situação. Sabia que a amava com a mesma intensidade de antes. Refletiu sobre o que poderia ter contribuído para as coisas chegarem ao ponto em que estavam. Em suas reflexões viajou até sua meninice. Lembrou de um sabiá que ganhara de um tio. A ave ainda era um pequeno filhote. Emocionado comprou uma imensa gaiola com suas economias, reservada com muito esforço para comprar uma bicicleta, mas o carinho com o pássaro era tanto, que fez questão de presenteá-lo com uma bela casa. Foi à casa de pássaros e interou-se de todos os procedimentos para manter a avezinha bem cuidada. Comprou várias rações, para diferentes fins, a fim de que o sabiá crescesse bem e, no tempo devido, cantasse bonito. Namorou a sua ave e literalmente viu o crescimento dela centímetro por centímetro.
Depois de muito tempo, estando já o pássaro na fase adulta, colocou a gaiola pendurada numa árvore, onde fazia uma agradável sombra, que ela sabia era apreciada pela ave, sentou-se numa pedra, e ficou assistindo o sabiá viver sua vida por longas horas. Foi então que percebeu a insignificância que era a vida daquela criatura. Depois de empanturrar-se com os diversos grãos que havia à sua disposição e matar a sede na água fresca do bebedouro, não sobrava alternativa ao pássaro a não ser se empoleirar e passar o resto do dia ali. Para quebrar o tédio a ave, periodicamente, trocava de poleiro ou dava pequenos pulos no assoalho da gaiola. Seu canto, descobriu o garoto, era mais uma canção fúnebre, um pedido de socorro, ou a chamada da morte para tirá-lo daquela vida sem graça. Estava o garoto ‘descobrindo’ a vida miserável que impusera ao seu animal de estimação, embora nas melhores das intenções e cheio de amor e carinho, quando, de repente, um casal de pássaros pousou num dos galhos da árvore. Como eles cantavam diferentes! Nisso seu sabiá soltou seu canto, e o menino percebeu que ele pedia, melhor que isso, implorava, para ser solto. ‘Mas se eu o soltar ele morre’, pensou logo o menino em defesa, não da ave, mas dele mesmo. ‘Ele foi acostumado a viver na gaiola, não sabe buscar a sua própria comida, não sabe onde encontrar água e, indefeso como ele é, pois provavelmente nem sabe voar direito, será fatalmente abocanhado por um gato da vizinhança’. Todas as desculpas que se fazem para justificar a prisão do pássaro o menino fez, mas, como ele era apenas um garoto, não se convenceu disso. Ele já sabia o que teria de fazer e, por isso mesmo, começou a chorar profusamente, pois sabia que ficaria sem a ave ao lhe dar a liberdade. Antes porém, preparou algumas estratégias. Arrumou várias pequenas vasilhas e as encheu, ou de água ou de alimento, espalhando-as estrategicamente em todos os espaços possíveis, inclusive em alguns dos galhos da árvore, bem junto ao tronco, para não cair. Daí então, com as mãos tremulantes e aos soluços, abriu a portinhola da gaiola. Sentiu-se aliviado quando a ave não saiu. Quis até sorrir, mas sabia que deveria dar um tempo para o sabiá perceber que estava livre. Ademais, deveria sair de perto da gaiola, pois sua presença impedia que a ave ganhasse liberdade. Assim, arrumou um pequeno galho, escorou a portinhola da gaiola para que ela permanecesse aberta, colocou-a pendurada no tronco e saiu devagarzinho, indo sentar numa pedra que estava a certa distância, para, de lá, poder observar o resultado. Cinco minutos depois o pássaro, depois de hesitar um pouco junto à saída, ganhou o céu e a liberdade, e o menino, num misto de tristeza e alegria, desatou a chorar.
Por três dias o garoto não arredou pé do lugar na esperança de rever o seu sabiá. Só comeu e bebeu o que lhe era levado na pedra onde ficou sentado. O pássaro não voltou para comer o alimento nem para beber a água, que era trocada duas vezes ao dia pelo menino. Quinze dias depois, o garoto, já consolado pela ‘ingratidão’ da ave, brincava com a sua irmãzinha no quintal quando, de repente, a garotinha apontou para a árvore e disse:
- Ele voltou. Olha! Ele tem uma namorada!
E o menino, não se contendo de contente, sorriu e saltitou como nunca fizera até então. E a ave, ou melhor, as aves, entendendo, talvez, a alegria do garoto, fizeram várias acrobacias no ar. Depois, exaustas, pousaram novamente no galho, e para a surpresa do menino e sua irmãzinha, o sabiá entoou o mais lindo canto que alguém já ouviu. A menininha, inteligente como ela só, puxou a camisa do irmão e saiu com essa:
- Ele veio dizer pra nós que se casou e está muito feliz!
O garoto, concordando com a irmãzinha, sorria enquanto balançava a cabeça afirmativamente.
De súbito ele se levantou da poltrona, tomou um pouco da bebida, e ficou refletindo porque ele se lembrou daquela história. De repente ligou os fatos. Sabia que o mais importante era a liberdade. Não adianta uma imensa gaiola, farta de comida e bebida, mesmo que providenciadas com muito amor e carinho, se o tédio for o sentimento dominante.
Na partida, assim que o carro se distanciou, chorou tal qual um menino que perdeu seu sabiá. Ficou três dias sem comer nem beber. Solicitou algumas folgas a que tinha direito na empresa e, descompromissado com a sociedade, não tomou banho, não penteou o cabelo, não escovou os dentes, não tirou o pijama, e nem saiu de casa. A dor da perda foi grande, mas, ao mesmo tempo, amenizada por saber que o brilho voltaria a habitar nos olhos que ele tanto amava. Sabia que o sorriso que o encantava tanto seria presenciado novamente, não por ele, evidentemente, mas isso era o menos importante.
Dois meses se passaram. A dor, embora ainda presente, já não doía tanto. E ela como estava? Ficou curioso de saber. Sabia de seus lugares prediletos, assim, mesmo lutando consigo mesmo, resolveu descobrir. Depois de uma semana de plantão conseguiu vê-la. Estava radiante! Mesmo de longe percebeu o brilho em seus olhos e o seu sorriso lindo. Não era necessário mais nada. Sentindo-se satisfeito por vê-la feliz, tratou de sair discretamente sem chamar a atenção.
No dia seguinte, sábado, no período da tarde, foi dar uma volta na praça da cidade. Quanto tempo não passava por ali! Resolveu sentar-se num dos bancos do local. Não passou nem cinco minutos quando sua atenção foi desviada para uma imensa árvore à sua direita. Um sabiá pousou delicadamente num dos galhos e, depois de bater as asas, assobiou uma linda canção. Era exatamente a canção que ouvira quando criança. Nada, nem ninguém, conseguiram desviar a atenção dele daquele pássaro.Quando, de volta para casa, refletia sobre tudo, teve a sensação de que o sabiá, ainda se sentindo em débito com ele, voltou para ajudá-lo naquele momento de perda. Algumas lágrimas rolaram em seu rosto. Não eram de tristeza, tampouco de alegria. Talvez fosse de consolo. Mas uma coisa é certa – seu coração pulsava de pura emoção!
Roberto Policiano