Roberto Policiano

26 de abr. de 2010

Hora da Sorte



Segunda feira, onze horas e trinta minutos, o senhor Isidoro passeia pelo parque da cidade pensando no que fará da vida. Está aposentado a oito meses. No princípio até que foi bom, pois trabalhara por quarenta anos. Estava de fato cansado, assim, a mudança foi bem vinda para ele. Fez uma viagem de dois meses com a Eustrátia, sua patroa, como ele gosta de dizer ao se referir a ela. O terceiro mês foi para descansar das férias, mas, quatro semanas depois, começou a ficar enfadonho. Quis compensar sua ausência nas casas dos parentes, mas ‘descobriu’ que era só ele que estava aposentado. Tentou inventar algum serviço para fazer, porém, depois de trabalhar quarenta anos no mesmo lugar e fazendo a mesma coisa, não teve a coragem nem a disposição necessárias para iniciar um novo empreendimento. Seu nervosismo contaminou sua patroa, que começou a se incomodar com o homem em casa. Ele quis ajudá-la nos afazeres domésticos, mas ela argumentou que aquele era o serviço dela e jamais permitiria que ninguém fizesse isso, falou olhando bem nos olhos do Isidoro enquanto balançava o indicador em direção a ele. Desde então o homem perambula pelas praças e ruas da cidade procurando o que fazer ou com quem conversar. Os amigos da infância ainda vivos ou continuavam trabalhando ou havia se mudado para uma cidade litorânea após se aposentarem. Pareceu-lhe que só ele era aposentado naquela cidade.
Por força de hábito olhou para o relógio a fim de se interar das horas. Veio-lhe à mente o tempo em que todos os minutos eram contados e a pressa era a ordem do dia. Eram tantos os compromissos que às vezes tinha a sensação que mal havia tempo para respirar. Agora sua vida está à sua disposição vinte e quatro horas por dia e ele não sabe o que fazer com ela. “Para falar a verdade”, pensou, “não há mais nenhum motivo para eu possuir um relógio”. Tirou-o do pulso e teve uma vontade tremenda de arremessá-lo contra o muro do parque, mas mudou de idéia ao ver um mendigo que descansava na sombra de uma árvore. “Do que será que ele está descansando?” perguntou para si mesmo. Sem esperar obter alguma resposta foi até oa homem e lhe estendeu o relógio, um valioso objeto, diga-se de passagem. Sorte do mendigo que estatelou os olhos até ficar desse tamanho assim, ó. Imediatamente após receber o presente foi examinar as horas, porquê, determinou para si mesmo, aquela seria a sua hora da sorte. Isidoro já se preparava para se retirar quando lembrou do telefone celular que carregava no bolso. Tirou-o, examinou-o, e concluiu: “Acho que não vou mais precisar disso também” e, sem pensar duas vezes, entregou-o para o sortudo.
- Não falei que essa é a minha hora de sorte? disse o mendigo em voz alta.
- Como terá sido a vida desse homem? perguntou Isidoro para si.
Foi aí que ele teve a idéia.
- Você está aqui todos os dias?
- Quase todos os dias, doutor. Às vezes dou uma volta pela cidade para disfarçar o tédio ou conseguir alguma coisa para comer. Fora isso estou sempre no parque.
- Posso lhe propor uma coisa?
- O que seria, doutor?
- Eu gostaria de escrever a sua história. O que você me diz disso?
- Todinha?
- Desde quando você nasceu até agora.
- Isso vai levar muito tempo, doutor.
- E tempo é o que não falta nem para mim nem para você.
- E o que eu vou ganhar com isso?
- O que você quer ganhar?
- Que tal o almoço, doutor?
- Posso fazer-lhe outra proposta?
- Por quê? O doutor achou o salário que eu pedi muito alto?
- De modo nenhum, e por isso vou melhorá-lo. Que tal quatro refeições por dia no tempo que eu levar para escrever a história?
- Não falei que essa é a minha hora de sorte? Disse o mendigo enquanto batia o lado da mão direita cerrada sobre a palma da sua mão esquerda.
Naquela mesma hora Isidoro voltou em casa correndo e voltou com um banquinho de armação de cano de alumínio e acento de lona e seu notebook na mão. A partir daquele dia a cena do Isidoro, sentado em seu banquinho com o notebook sobre as pernas digitando o que o mendigo, que se identificou como Aurélio Nakamura Friedisch de Macedo contava, passou a fazer parte do cenário do parque. No dia seguinte, a Rita Cachaça, alcunha recebida por gostar de um - um não, vários - tragos, ao presenciar a cena, foi se inteirar do assunto. Quis que sua vida também fosse escrita, o que Isidoro prometeu fazer assim que terminasse de escrever a história do Aurélio. A partir de então foi uma ouvinte assídua das entrevistas, esquecendo até mesmo de seus tragos.
Duas semanas depois o Joãozinho da Emencira, colega de infância do Isidoro, encontrou os três no parque e quis saber do que se tratava. Ao ser informado do projeto do amigo gostou da idéia e, para colaborar, ofereceu um pequeno escritório, desocupado na época, para que o trabalho fosse feito num ambiente mais apropriado.
Eustrátia, patroa do Isidoro, ao saber do trabalho do marido e da oferta do Joãozinho, resolveu participar, assim, se prontificou em levar as refeições ao escritório, que ficava a apenas dois quarteirões de sua casa. Rita Cachaça, é claro, foi junto para não perder a sua vez na fila. Eustrátia, muito observadora, levou, no terceiro dia de sua participação no projeto, um bloco de papel e algumas canetas e, entregando-os à Rita, sugeriu:
- Por que você não vai escrevendo suas lembranças para facilitar o trabalho?
Rita, agora ex-Cachaça, ficou fascinada com a idéia e, sem o saber, virou escritora.
Não sei como, mas a notícia se espalhou até que certo dia, cerca de um mês depois da mudança para o escritório, Isidoro foi surpreendido por um repórter do jornal da região que queria publicar um artigo sobre o projeto. Depois do jornal local, a notícia saiu no rádio e, logo após, na televisão. Como resultado, uma Organização Não Governamental se ofereceu para patrocinar o trabalho do Isidoro, que passou a ser remunerado pelos seus serviços, tornando-se, como conseqüência, ilustre e respeitado cidadão da cidade, que para cumprir com tantos compromissos conseguidos com seu projeto, teve que comprar um novo relógio e um telefone celular, que, ultimamente, não o tem deixado trabalhar direito. Ele, porém, ao invés de estar chateado, anda feliz da vida.
Onze horas e trinta minutos – hora da sorte do Isidoro, do Aurélio, da Rita, da Eustrátia e de tantos outros!


Roberto Policiano

19 de abr. de 2010

Pedido de perdão



Perdão, amor,
eu tentei de tudo,
mas não consegui.
Mudei meus hábitos;
resguardei-me de excessos;
segui a cartilha de uma vida regrada;
fugi da carne vermelha;
abri mão das delícias fritas;
aboli as bebidas alcoólicas de minha vida;
passei longe de refrigerantes;
lanchonetes nem pensar;
optei pelas saladas cruas;
comi cenouras diariamente;
virei as costas para o pastel;
não como mais pão branco pela manhã,
apenas torradas com mel;
carnes só brancas:
cozidas, grelhadas, ou, no máximo, na chapa;
aderi aos grãos e às fibras;
troquei o barzinho pela academia
e exercitei-me duas horas todos os dias;
só saí ao sol antes das nove
ou depois das dezessete
e sempre besuntado
com bloqueador solar oitenta;
dormi e acordei cedo;
pratiquei sempre exercícios matinais;
Só tomei água mineral,
no mínimo dois litros por dia;
recorri ao silêncio e à calmaria;
tomei banho de sais
e beneficiei-me da aromaterapia;
obedeci a tudo o que os mestres ensinaram;
fiz tudo que me foi possível,
mas não consegui.
perdão, amor,
eu envelheci!


Roberto Policiano

12 de abr. de 2010

Bernardes e seu cão São Bernardo



Hoje eu os vi caminhando no parque. Bernardes levava à coleira seu cão da raça São Bernardo. Pensando melhor, ninguém levava ninguém. Ambos caminhavam tão sincronizados que não dá para afirmar se havia alguém no comando. Havia entre eles uma amizade antiga. Se o Bernardes tiver setenta e cinco anos, o seu São Bernardo tem setenta anos. A caminhada de ambos é despreocupada e sem pressa. Quero arriscar que é preguiçosa, mas não posso afirmar isso. Porém de uma coisa tenho certeza - dá preguiça ver os dois caminharem!

Tento imaginar o primeiro encontro dos dois. Bernardinho, menino de então cinco anos, tem o seu pedido atendido pelo pai e ganha um filhote de cachorro. A alegria de ambos fica logo evidente aos observadores.

Cerca de um ano depois o garoto, agora com seis anos, não consegue dominar a força e a energia de seu mascote de apenas um ano de idade que, só de brincadeira, arrasta o seu dono através do imenso quintal gramado, pois o menino, querendo demonstrar que era o chefe da dupla, não larga a correia que pretende prender o animal. E lá vão os dois, o menino gritando ordens e rindo ao mesmo tempo e o cão, alheio aos comandos do dono, correndo e latindo sem parar, arrastando o Bernardinho consigo.

Quantas coisas os dois fizeram juntos! Quantos segredos e cumplicidade! O vaso quebrado numa das travessuras e enterrado no fundo do quintal para não ser descoberto; guloseimas roubadas e comidas à escondida pelos dois; escapadas sem permissão para passearem pelas ruas do bairro; o consolo e o apoio de um quando o outro passava por momentos ruins; choros e grunhidos nas separações; risos, latidos, corridas e tombos nos reencontros...

Depois veio o período de domínio da dupla pelo Bernardes, então rapaz com força suficiente - embora nem sempre – para dominar o seu enorme cão. Quantas conquistas e aventuras os dois compartilharam juntos!

Agora tudo isso é passado. Nada de correrias, tombos, aventuras ou conquistas. Seguem os dois lado a lado. A correia frouxa presa à coleira do animal indica que não há condutor nem conduzido. Os dois amigos caminham no mesmo ritmo e compasso até chegarem numa enorme árvore onde as raízes salientes são convites irresistíveis para se sentar à sombra agradável num dia calorento como este. Bernardes sentou-se primeiro. O São Bernardo, aprovando a idéia, sentou-se em seguida ao lado do dono, ou melhor, do amigo. A mão do homem alcança o animal e começa a roçar-lhe a cabeça. Este, por outro lado, encosta a cabeça na perna do amigo e, fechando os olhos, queda tranqüilo agradando-se do afago. Lá os dois amigos passam a manhã assistindo a vida acontecer sem pressa, nem compromisso, nem nada, apenas o compartilhar da vida de dois bons e velhos amigos.


Roberto Policiano

6 de abr. de 2010

Tsunami



De repente

invades-me

por inteiro

e, vencendo todas as barreiras,

revolves minhas entranhas

tal qual um furacão,

deixando-me prostrado,

vencido,

exaurido,

derrotado,

neste turbilhão que esparrama,

desordenadamente

e sem piedade,

todas as minhas emoções,

deixando-as expostas,

retorcidas,

amarrotadas,

esfarrapadas,

a fim de provar,

sem compaixão,

teu poder de me sacudir

violentamente

segundo teu bel-prazer

para, em seguida,

abandonar-me

humilhado

em um canto qualquer

onde ficarei

tentando inutilmente

recompor-me

só para cair novamente

em tua nova investida

sem hora marcada!


Roberto Policiano