Roberto Policiano

5 de mar. de 2014

Diferença cultural





O sol ainda não acordara, mas Yatimbé já estava a caminho da cidade. Andava com dificuldades por causa da escuridão, mas como conhecia a mata muito bem, quase que ‘enxergava’ os obstáculos diante de si. Chegou à estrada, ou melhor, uma rua de terra, um pouco antes de clarear. O lugar era isolado, de modo que o andarilho andou até que a luz aparecesse e se escondesse novamente. O alimento e a água tirou do próprio local, coisa que ele e os seus estavam habituados a fazer. Para passar a noite o guerreiro escolheu uma árvore cuja forquilha o acomodou confortavelmente, do ponto de vista dele, evidentemente. Cinco dias depois chegou finalmente a uma rodovia. Usando seu senso de direção, embora fosse a primeira vez que viajasse tão longe de sua aldeia, escolheu o lado direito e continuou viagem. Mais uma semana de jornada e o índio chegou a uma cidade habitada pelos brancos. Como não queria chamar a atenção de ninguém, preferiu andar pela mata que circundava o local em sua periferia. Como um verdadeiro filho da floresta conseguiu facilmente permanecer no local camuflando-se entre os arbustos e galhos de árvores sem ser notado por nenhum dos moradores do lugar. Aproveitou também de sua habilidade de subir em árvores e, escolhendo as mais altas delas, teve uma visão panorâmica de uma boa parte da região. Foi dali que observou, embora não entendesse muito bem o que via, alguns carros que circulavam pelas ruas. Conheceu ainda - se bem que, creio eu, conheceu não seja o termo mais exato – a bicicleta. Achou estranho o modo de as pessoas se vestirem, concluindo que deveria ser bastante incômodo aqueles trajes. Que se depararia com coisas diferentes ele já esperava, embora não fizesse ideia de nada do que vira. Mas alguns hábitos que presenciou nas pessoas que visualizara das janelas das casas o deixou apavorado, de modo que, desistindo da aventura de explorar um povo tão incomum, tratou de voltar apressado à sua aldeia.

Depois de refeito da jornada de ida e volta e dos sustos que levara em suas observações, convidou a tribo para uma reunião a fim de relatar suas experiências. A fogueira crepitava no centro da Ocaraçu. O Cacique e o Pajé estavam em seus lugares e, junto com eles, aqueles da tribo que, pelos seus feitos, recebiam a honra de lugares tão visados. Entre estes o nosso herói. Logos após os guerreiros, seguidos dos jovens. Então vinhas as índias e, por último as crianças. Depois das boas vindas das autoridades o explorador teve permissão para relatar suas aventuras e descobertas. O índio iniciou falando de sua jornada e de onde encontrara comida, água e lugar para passar a noite. Introdução de praxe, pois era um ‘mapa oral’ para os próximos viajantes da tribo. À medida que o guerreiro narrava suas experiências se empolgava mais e mais, e, consequentemente, inebriava os ouvintes que mantinham os olhos e os ouvidos atentos a cada detalhe. Quando chegou ao ponto da narrativa em que aquele filho da floresta resolveu voltar depressa à tribo ele, como que tomado pela emoção, estava em pé e movimentando-se freneticamente ao passo que gesticulava cada detalhe que vira na vila dos brancos, usando sua expressão. Acompanhe um pouco a sua descrição:

‘Mim olhava com cuidado detrás dos arbustos numa das ocas do lugar, que, como as outras que eu falei, era quadrada. Havia lugar que entrava e saia que era fechada por uma madeira fina e larga que girava presa na parede e não caia. Até mesmos as crianças conseguiam mover aquela madeira, embora fosse bem larga e alta. Havia também buracos na parede que não servia para entrar nem sair, pois eram pequenos e ficavam no meio, mas por eles dava para se ver o interior da oca. Num destes buracos eu vi uma anciã sentada em frente à outra anciã. Deviam ser irmãs, pois eram bem parecidas. Tudo o que uma fazia, a outra repetia. Uma esfregava alguma coisa no rosto, a outra repetia. Era assim o tempo todo. Até que elas fizeram uma coisa absurda que me deixou com medo. Usando suas próprias mãos elas arrancaram os cabelos da cabeça. Nenhuma delas gritou nem chorou, e os cabelos ficaram de lado e bem arrumados, sem esparramarem os fios. Mim ficou angustiado com aquilo e não quis ver mais. Mim correu para outro lugar, numa oca bem longe dali. No quadrado que mostrava o interior mim viu um ancião fazendo outra coisa pavorosa. Ele enfiou a mão na boca e arrancou todos os seus dentes, não só isso, mas arrancou também as gengivas. Os dentes, grudados na gengiva, foram colocados num monte de água! É isso mesmo, á água não esparramava, mas ficava no formato de um coité sem ter coité nenhum. Não saiu sangue da boca do velho e ele parecia não sofrer nenhuma dor.

Mim ficou com medo e saiu dali. Quando cheguei em outra oca vi uma moça bonita olhando bem de perto para outra moça igual a ela. Ela quase encostou seu rosto no rosto da outra e, por incrível que pareça, a moça usou as próprias mãos e arrancou os cílios de seus olhos. Fez isso com um e depois fez com outro! Eu não aguentei aquilo e fui para outro lugar. Cheguei numa oca onde havia uma parte dela que não tinha parede, embora fosse coberta. Nela uma moça bonita estava sentada perto de uma prancha de madeira que era erguida por quatros troncos pequenos, um em cada canto da prancha. A moça estava conversando com uma mulher, que ficava do outro lado. As duas pareciam felizes, pois riam enquanto conversavam. Foi então que aconteceu algo horrível; aquela moça começou a arrancar as próprias unhas! Primeiro do dedão, depois do outro. Quando foi tirar o terceiro eu desisti de ver aquele sacrifico e saí dali. Mim Ainda teve coragem de olhar mais uma oca, mas se mim soubesse o que viria não teria feito isso! Um moço, tal forte como um dos nossos guerreiros, enfiou o dedo no próprio olho e arrancou a sua pele! Não suportei ver mais nada e resolvi voltar imediatamente para meu povo. Eu não estou mentindo, meus irmãos, sangue do meu sangue, carne da minha carne e ossos dos meus ossos, pois eu vi tudo isso que relatei e é a pura verdade!’.

Ao terminar seu relato o índio voltou para seu lugar, acocorou-se, colocou os dois braços sobre os joelhos, e, encostando a cabeça dos braços, entregou-se ao choro, cujo som lamurioso podia ser ouvido em toda a aldeia.

O cacique colocou a mão direita no ombro do guerreiro. Em seguida olhou para o pajé que, balançando a cabeça afirmativamente, levantou-se e, depois de colocar as duas mãos na cabeça do narrador, emitiu um som gutural que durou alguns segundos, seguindo de um suspiro lamentoso. A seguir seguiu para sua tenda a fim de preparar uma infusão para dar ao rapaz. A tribo ficou imóvel e calada por algum tempo. Depois, um a um, a começar pelo cacique, se levantou e caminhou cabisbaixo para sua oca. Depois de medicado o índio foi levado para a tenda do pajé. No centro da ocaraçu a fogueira continuou a arder até consumir a maior parte da lenha.

Roberto Policiano