Diferença cultural
O sol ainda não acordara, mas Yatimbé já
estava a caminho da cidade. Andava com dificuldades por causa da escuridão, mas
como conhecia a mata muito bem, quase que ‘enxergava’ os obstáculos diante de
si. Chegou à estrada, ou melhor, uma rua de terra, um pouco antes de clarear. O lugar era isolado, de modo que o andarilho andou
até que a luz aparecesse e se escondesse novamente. O alimento e a água tirou
do próprio local, coisa que ele e os seus estavam habituados a fazer. Para
passar a noite o guerreiro escolheu uma árvore cuja forquilha o acomodou confortavelmente,
do ponto de vista dele, evidentemente. Cinco dias depois chegou finalmente a
uma rodovia. Usando seu senso de direção, embora fosse a primeira vez que
viajasse tão longe de sua aldeia, escolheu o lado direito e continuou viagem.
Mais uma semana de jornada e o índio chegou a uma cidade habitada pelos
brancos. Como não queria chamar a atenção de ninguém, preferiu andar pela mata
que circundava o local em sua periferia. Como um verdadeiro filho da floresta
conseguiu facilmente permanecer no local camuflando-se entre os arbustos e
galhos de árvores sem ser notado por nenhum dos moradores do lugar. Aproveitou
também de sua habilidade de subir em árvores e, escolhendo as mais altas delas,
teve uma visão panorâmica de uma boa parte da região. Foi dali que observou,
embora não entendesse muito bem o que via, alguns carros que circulavam pelas
ruas. Conheceu ainda - se bem que, creio eu, conheceu não seja o termo mais
exato – a bicicleta. Achou estranho o modo de as pessoas se vestirem,
concluindo que deveria ser bastante incômodo aqueles trajes. Que se depararia
com coisas diferentes ele já esperava, embora não fizesse ideia de nada do que
vira. Mas alguns hábitos que presenciou nas pessoas que visualizara das janelas
das casas o deixou apavorado, de modo que, desistindo da aventura de explorar
um povo tão incomum, tratou de voltar apressado à sua aldeia.
Depois de refeito da jornada de ida e
volta e dos sustos que levara em suas observações, convidou a tribo para uma
reunião a fim de relatar suas experiências. A fogueira crepitava no centro da
Ocaraçu. O Cacique e o Pajé estavam em seus lugares e, junto com eles, aqueles
da tribo que, pelos seus feitos, recebiam a honra de lugares tão visados. Entre
estes o nosso herói. Logos após os guerreiros, seguidos dos jovens. Então
vinhas as índias e, por último as crianças. Depois das boas vindas das
autoridades o explorador teve permissão para relatar suas aventuras e
descobertas. O índio iniciou falando de sua jornada e de onde encontrara
comida, água e lugar para passar a noite. Introdução de praxe, pois era um
‘mapa oral’ para os próximos viajantes da tribo. À medida que o guerreiro
narrava suas experiências se empolgava mais e mais, e, consequentemente,
inebriava os ouvintes que mantinham os olhos e os ouvidos atentos a cada
detalhe. Quando chegou ao ponto da narrativa em que aquele filho da floresta
resolveu voltar depressa à tribo ele, como que tomado pela emoção, estava em pé
e movimentando-se freneticamente ao passo que gesticulava cada detalhe que vira
na vila dos brancos, usando sua expressão. Acompanhe um pouco a sua descrição:
‘Mim olhava com cuidado detrás dos
arbustos numa das ocas do lugar, que, como as outras que eu falei, era
quadrada. Havia lugar que entrava e saia que era fechada por uma madeira fina e
larga que girava presa na parede e não caia. Até mesmos as crianças conseguiam
mover aquela madeira, embora fosse bem larga e alta. Havia também buracos na
parede que não servia para entrar nem sair, pois eram pequenos e ficavam no
meio, mas por eles dava para se ver o interior da oca. Num destes buracos eu vi
uma anciã sentada em frente à outra anciã. Deviam ser irmãs, pois eram bem
parecidas. Tudo o que uma fazia, a outra repetia. Uma esfregava alguma coisa no
rosto, a outra repetia. Era assim o tempo todo. Até que elas fizeram uma coisa
absurda que me deixou com medo. Usando suas próprias mãos elas arrancaram os
cabelos da cabeça. Nenhuma delas gritou nem chorou, e os cabelos ficaram de
lado e bem arrumados, sem esparramarem os fios. Mim ficou angustiado com aquilo
e não quis ver mais. Mim correu para outro lugar, numa oca bem longe dali. No
quadrado que mostrava o interior mim viu um ancião fazendo outra coisa
pavorosa. Ele enfiou a mão na boca e arrancou todos os seus dentes, não só
isso, mas arrancou também as gengivas. Os dentes, grudados na gengiva, foram
colocados num monte de água! É isso mesmo, á água não esparramava, mas ficava
no formato de um coité sem ter coité nenhum. Não saiu sangue da boca do velho e
ele parecia não sofrer nenhuma dor.
Mim ficou com medo e saiu dali. Quando
cheguei em outra oca vi uma moça bonita olhando bem de perto para outra moça
igual a ela. Ela quase encostou seu rosto no rosto da outra e, por incrível que
pareça, a moça usou as próprias mãos e arrancou os cílios de seus olhos. Fez
isso com um e depois fez com outro! Eu não aguentei aquilo e fui para outro
lugar. Cheguei numa oca onde havia uma parte dela que não tinha parede, embora
fosse coberta. Nela uma moça bonita estava sentada perto de uma prancha de
madeira que era erguida por quatros troncos pequenos, um em cada canto da
prancha. A moça estava conversando com uma mulher, que ficava do outro lado. As
duas pareciam felizes, pois riam enquanto conversavam. Foi então que aconteceu
algo horrível; aquela moça começou a arrancar as próprias unhas! Primeiro do
dedão, depois do outro. Quando foi tirar o terceiro eu desisti de ver aquele
sacrifico e saí dali. Mim Ainda teve coragem de olhar mais uma oca, mas se mim
soubesse o que viria não teria feito isso! Um moço, tal forte como um dos
nossos guerreiros, enfiou o dedo no próprio olho e arrancou a sua pele! Não
suportei ver mais nada e resolvi voltar imediatamente para meu povo. Eu não
estou mentindo, meus irmãos, sangue do meu sangue, carne da minha carne e ossos
dos meus ossos, pois eu vi tudo isso que relatei e é a pura verdade!’.
Ao terminar seu relato o índio voltou para
seu lugar, acocorou-se, colocou os dois braços sobre os joelhos, e, encostando
a cabeça dos braços, entregou-se ao choro, cujo som lamurioso podia ser ouvido
em toda a aldeia.
O cacique colocou a mão direita no ombro
do guerreiro. Em seguida olhou para o pajé que, balançando a cabeça
afirmativamente, levantou-se e, depois de colocar as duas mãos na cabeça do
narrador, emitiu um som gutural que durou alguns segundos, seguindo de um
suspiro lamentoso. A seguir seguiu para sua tenda a fim de preparar uma infusão
para dar ao rapaz. A tribo ficou imóvel e calada por algum tempo. Depois, um a
um, a começar pelo cacique, se levantou e caminhou cabisbaixo para sua oca.
Depois de medicado o índio foi levado para a tenda do pajé. No centro da
ocaraçu a fogueira continuou a arder até consumir a maior parte da lenha.
Roberto Policiano
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