Roberto Policiano

25 de jun. de 2006

João Ninguém

Ofegava enquanto arrastava sua carroça. Aquele dia achara várias coisas “valiosas” no lixo. A renda garantiria comida e bebida por uns três dias, calculava. O semáforo o fez parar. Não achou ruim, afinal poderia descansar um pouco. O dia estava extremamente quente. Seu corpo estava molhado pelo suor. Parecia não se incomodar com as moscas que esvoaçavam em torno de sua cabeça. Seu fiel cachorro, aproveitando a parada, sentou-se aos seus pés. Algumas gotas de suor, que nasceram em sua testa, penetraram em seus olhos provocando uma certa ardência. Imediatamente levou suas mãos imundas para esfregá-los. A ardência aumentou, provocando-lhe uma certa inquietação e aborrecimento. Piscou várias vezes. Foi neste momento que olhou para o lado e observou a vitrine de uma das lojas, que, como todas as outras, estava enfeitada em vista da proximidade das festas. As pessoas andavam apressadas à procura de presentes e artigos para a ocasião. A rua, a cidade, o estado, o país, o mundo, estavam em alvoroço. Um certo frenesi contaminava tudo e todos. Mas nada disso ele enxergou. O que ele descobriu naquela vitrine abalou-o profundamente. Aquilo era ele? Correu para frente da loja a fim de examinar a si mesmo. Não queria acreditar no que via. Aquele cabelo longo, embaraçado, e duro de imundo, era dele? Examinou a região em volta dos olhos. Percebeu, apesar da sujeira impregnada, olheiras escuras a rodeá-los. Descobriu um rosto magro, quase cadavérico. Soube-se dono de uma barba rala, longa e encardida. Apavorado, cobriu o rosto com as mãos. Assustou-se com o tamanho e a imundice das unhas. Examinou as mãos cuidadosamente enquanto as girava diante de seus olhos. Olhou para seu próprio corpo e o viu coberto por farrapos fedorentos. Aquilo que um dia foram sapatos, tivera o couro da parte da frente arrancado. As aberturas revelavam que as condições dos dedos dos pés eram as mesmas que a do resto do corpo. Sentiu as gotas mornas das lágrimas percorrerem seu rosto e umedecer sua barba. Nem se lembrava mais da última vez que havia chorado. Soltou um grito lamentoso. Sentou-se no meio-fio, ao lado de sua carroça, colocou os braços cruzados sobre os joelhos, apoio a cabeça nos braços, e chorou profusamente. Logo sua barba ficou umedecida de lágrimas, baba e coriza. Seu fiel amigo correu até ele e lambeu freneticamente uma de suas orelhas. Frustrado na tentativa fracassada de animar seu dono sentou-se ao seu lado e soltou um uivo triste. O semáforo abriu. Os motoristas que estavam na mesma fila da carroça acionaram as buzinas insistentemente. Os mais apressados tentaram passar para a faixa adjacente. O trânsito, que já era intenso, ficou caótico. Xingos, pragas, choro, buzinas, soluço, uivo, mãos socando o ar ameaçadoramente, palavrões, choro, maldiçoes, soluço, mãos batendo insistentemente nas latarias dos carros, uivo, buzinas, gritos, soluço, ameaças, choro, xingos, buzinas, uivo, choro, choro, choro, buzinas, buzinas, buzinas...
Roberto Policiano

18 de jun. de 2006

Felicidade



Felicidade!
Onde se esconde?
Como se obtém?

Na realidade,
Não Busque onde,
E sim com quem.

13 de jun. de 2006

Despedida

DESPEDIDA

Chegara, enfim, o dia da despedida.
Tudo e todos ficariam para trás.
Seu mundo, em pouco tempo, seria totalmente diferente.
Emoções conflitantes povoavam seu peito.
Por um lado, uma sensação de alívio.
Por outro lado, no entanto, sentia que estava perdendo muito.
Olhava as paredes, a mesa, o armário......
Pegou alguns documentos e fitou-os por alguns instantes.
Por vários anos eles fizeram parte de sua rotina.
Dentro em pouco eles sumiriam de sua vida como que num passe de mágica.
Outros papéis, com objetivos totalmente diferentes, assumiriam o lugar destes.
Foi ao bebedouro. Enquanto sorvia a água que jorrava, filosofou:
“amanhã estarei bebendo água de uma outra fonte”.
No decorrer do dia fitava cada rosto que cruzava seu caminho.
Estava como que gravando cada contorno, cada expressão, cada detalhe....
Ia deixar uma porção de colegas. Ficaria para trás uma porção de amigos.
Tinha uma sensação de que demoraria muito tempo para rever aqueles rostos amigos.
Talvez jamais os veria novamente!
Ficou pensando nos semblantes novos que fariam parte de sua vida a partir do dia seguinte.
Como seriam? Alegres? Sérios? Carrancudos? Amigáveis? Tristes?
Tomou um café. “Meu último café”, pensou.
O que deveria sentir com tudo isso? Não tinha a menor idéia!
Na hora do almoço, como era seu costume, foi dar um passeio. “Meu último passeio”, falou para si mesmo.
À tarde a sensação de perda foi ficando cada vez mais profunda.
Sabia que a hora da despedida não tardaria, aliás chegou bem mais cedo do que imaginava.
Alguns amigos entraram até sua sala com um presente de despedida. Aquilo foi comovente.
A sensação de que estava abrindo mão de coisas valiosas voltou a rondar seus pensamentos.
Passou-se algum tempo e outros amigos vieram com um outro presente de despedida.
Fez um esforço extremo para não deixarem perceber a emoção que fervilhava em seu íntimo.
Enfim chegou o momento da despedida. Fez questão de despedir-se pessoalmente de todos.
Foi de mesa em mesa despedir-se deles. Amigos novos e velhos. Muitos eram recém-chegados, mesmo assim fez questão de despedir-se de todos.
Cada cumprimento, cada abraço, cada despedida, era especial, muito especial.
O coração acelerava. O peito apertava. Estava chegando a hora!
E a hora chegou. Depois das despedidas, o momento de ir embora.
Não quis dar uma última olhada no prédio. Já sentira muita emoção naquele dia.
Andou rápido, sem olhar para trás. Sabia que atrás de si estavam muito mais do que coisas.
Deixava para trás pessoas. Não, não eram apenas pessoas.
Deixava para trás amigos. Não, não eram apenas amigos.
Deixava para trás vidas.
Deixava para trás amizades.
Deixava para trás convivências.
Deixava para trás experiências compartilhadas.
Deixava para trás preciosos anos de sua vida.
Deixava para trás emoções... fortes emoções!
Enquanto caminhava encontrou, no canteiro que separa as pistas da avenida, uma flor.
Estava murcha. Quão coincidente!
Chegou à estação do metrô.
Um trem estava na plataforma.
Correu para não perdê-lo.
Sentou no seu canto preferido.
Soou a campainha de segurança.
As portas se fecharam.
A composição partiu.
Acabou!
Roberto Policiano

4 de jun. de 2006

Acho que sou um poeta



Acho que sou um poeta

Certa manhã acordei
Com uma idéia pateta.
Olhei no espelho e achei
Que encarava um poeta!

Rabisquei algumas palavras
E achei que teve sentido.

Não foi nenhuma obra de arte
Como faz o Chico Buarque.

Nem foi um poema garboso
Como os do Caetano Veloso.

Tampouco um poema sutil
Como compõe o Gilberto Gil.

Não consegui o sentimento
Alcançado pelo Milton Nascimento.

Nem são versos geniais
Como os do Vinicius de Moraes.

Não marquei, com uma pedra, o caminho.
Isso o Drumond fez sozinho.

Não descrevi, da vida, o Afã
Como faz tão bem o Djavan.

Nem foi uma poesia cristalina
Como fez a Cora Coralina.

Foram apenas alguns versos singelos.
Não criei nem “alfas” nem “Betas”.
Mas instilou em mim a ousadia
De me sentir um poeta!
Roberto Policiano