Roberto Policiano

27 de nov. de 2006

Sem tempo a perder


Cinco e meia da manhã. O barulho estridente do relógio a desperta. Levanta, ainda dormindo, e inicia mais um dia atarefado. Boceja enquanto prepara a primeira alimentação da família. Meia hora depois o marido beija-a em despedida e sai para o trabalho. Está na hora de acordar o filho e prepará-lo para o colégio. Veste-o enquanto ele nem terminou de acordar. Deixa-o se alimentando e apressa em se vestir. Enquanto faz isso relembra dos detalhes que transmitirá à equipe de trabalho. Certifica se o relatório e as planilhas estão em sua bolsa. Faz isso uma três vezes enquanto se arruma. Alimenta-se às pressas enquanto prepara o material que o filho usará na escola.
Às seis horas e quarenta e cinco minutos sai com o filho em direção ao colégio. Antes de trancar a porta abre a bolsa e certifica-se, pela quarta vez, se os documentos que usará na reunião com sua equipe estão realmente lá. Tranca a porta, segura na mão do filho e sai apressada. Precisa levá-lo ao colégio e apressar os passos para não perder a condução. Os minutos são preciosos, por isso seus passos são rápidos, obrigando seu filho a correr para acompanhá-la.
Enquanto passam por uma praça, na mesma velocidade que saíram de casa, a atenção do menino é desviada para alguns pombos.
- Olha que pombos bonitos, mamãe!
- Depressa, Felipe, a mamãe está atrasada.
Logo mais à frente o menino tenta diminuir o passo para observar melhor uma borboleta que acabara de pousar em uma flor, mas o toque decidido da mãe faz com que ele acelere o passo, sobrando-lhe a alternativa de virar o rosto em direção à borboleta e vê-la ficar cada vez mais distante.
Assim que os dois chegam em frente ao colégio, a mãe o abraça, acaricia seus cabelos, beija-o na testa, entrega-o à servente, e sai apressada.
Enquanto espera pela condução vê dois pombos pousarem no canteiro central da avenida. Lembra do seu tempo de criança, quando a vida não era tão corrida. Vê a si mesma correndo atrás dos pombos enquanto eles saiam em revoada apenas para pousarem a alguns metros à frente. Compara sua infância com a do filho. Tem pena dele, coitado. Mas, justifica, que alternativa ela tinha? O mundo não era o mesmo, e todo esse sacrifício era feito pensando apenas no futuro dele. Não consegue convencer a si mesma. Uma lágrima ainda tenta escapar de seus olhos, mas a condução chega trazendo-a a realidade. Entra, senta-se, e, como não tem tempo a perder, tira os relatórios da bolsa e segue viagem estudando os argumentos que usará para convencer sua equipe do seu novo projeto.

Roberto Policiano

21 de nov. de 2006

Contraste

Hoje eu olhei no espelho e vi refletir
O mundo em que vivemos, como que por mágica.
Vi um mundo que o homem não soube repartir;
Vi um grande contraste, uma imagem trágica.

Vi, naquele espelho, imagens contrastantes.
Uma retrospectiva do que fizemos até aqui.
Vi coisas bonitas, coisas impressionantes;
Castelos, mansões, iates lanchas, Jet ski...

Pessoas contentes, conversantes, bonitas,
Parecia até uma festa de artistas!
Bem cuidadas, bem produzidas, bem trajadas,
Era como um sonho, um conto de fadas.

E as crianças então? Bem cuidadas, rosadas.
Dava gosto de vê-las todas contentes
Envolvendo o ambiente de alegrias e risadas
Imaginando ser esta a sorte de todas as gentes.

Mas o espelho que é fiel em refletir a verdade,
Ia mais além do que mostrar as coisas belas,
Deixava-me ver tudo, toda a realidade,
Mostrava-me também miséria; cortiços; favelas...

Vultos que, reparando bem, também eram gentes!
Maltratados, malcuidados, maltrapilhos, indigentes,
Cabisbaixos sem esperanças, sem caminhos nem atalhos,
Era como um pesadelo, um desfile de espantalhos.

E as crianças então? Famintas, esquecidas
por uma sociedade pela ganância entorpecida.
Dava pena de vê-las totalmente sem esperanças,
Não tendo nem o direito de serem apenas crianças.

Estas vidas contrastantes, no espelho refletidas,
Tocaram fundo em meu peito, calaram fundo em minha mente.
Fizeram-me refletir no contraste desta vida,
Fazendo-me, de repente, ter vergonha de ser gente!

Roberto Policiano

13 de nov. de 2006

Às favas com a probabilidade

Encontrei-o enquanto fazia minha caminhada numa certa manhã. Estava estático como uma sentinela e com os olhos fixos em lugar nenhum. Depois disso via-o com uma certa freqüência em pontos diferentes do trajeto que fazia no meu exercício matinal. Na maioria das vezes estava como eu o encontrei pela primeira vez – estático como uma sentinela e com os olhos fixos em lugar nenhum. Num exercício de imaginação, adivinhei a sua vida. Vejo-o, ainda pequeno, correndo com os braços abertos, deixando que o vento batesse em seu rosto, numa espécie de bosque. Perto dali, numa humilde casinha do interior, sua família se abrigava. Cresceu entre as árvores e os animais que sua família criava. Aprendeu com o pai como cuidar dos bichos. Aprendeu com a avó a identificar muitas ervas que poderiam ser utilizadas para tratar da saúde. Sua infância foi feliz ali. Já havia escolhido o lugar onde construiria sua casa quando crescesse e constituísse família. Com o passar dos anos, porém, viu-se obrigado a mudar com a família para um lugar mais promissor. A partir de então não se fixou por muito tempo em nenhuma cidade, até que, já na juventude, chegou à capital, onde a possibilidade de emprego era maior. Estabeleceu-se. Cresceu. Casou. Constituiu família. Trabalhou arduamente. Nunca esqueceu sua cidade natal. A família cresceu. Os filhos casaram-se. Aposentou-se. A expectativa de voltar para sua cidade era grande. Fazia plano e mais plano. Era só terminar uns compromissos financeiros. Questão de meses. Alguns meses passam rápido, dizia para si mesmo. Sentiu um mal estar repentino que o levou ao hospital. O diagnóstico não poderia ter sido pior. Era necessário ficar para iniciar um tratamento que, segundo o médico, seria para o resto da vida. Os compromissos financeiros foram cumpridos, mas o tratamento segurava-o perto do hospital. Desde então vive estático como uma sentinela e com os olhos fixos em lugar nenhum. Ele procura algo. Procura um meio de poder voltar. Sabe que não existe, mas insiste em procurar. Não sente prazer. Não sente alegria. Não tem vontade de continuar. Mas a família, o amigo, o médico, todos insistem para ele continuar com o tratamento. Até quando? Ele sabe a resposta, e isto o deixa revoltado. Sabe que nunca mais verá a sua terra natal.
Quer saber de uma coisa? Para o inferno com a realidade! Às favas com a probabilidade! Vamos ajudar o homem. Vá lá que ele piore. Que seja que um dia, sem lembrar mais o que deseja, anda como um demente à procura do que perdeu. O que ele perdeu já esquecera, mas sabe que perdera algo. Sai desnorteado à procura de algo que nem mesmo ele sabe o quê! Enlouquecera! Virou um andarilho. Passou vários dias desacordado coberto pelo matagal num terreno vazio. Cães lamberam a sua boca. Mas uma velha o achou. Uma ex-escrava que foi levada por outros escravos, há cerca de cento e trinta anos, à idade cinco anos, para um quilombo. Desde então viveu se escondendo na mata para não ser recapturada. Não sabe que a escravidão acabou. Não sabe que todos seus contemporâneos já morreram. Não sei também como ela foi parar ali, a não ser para acudir o nosso homem. Embora tenha centro e trinta e cinco anos de idade, aparenta ter sessenta anos. Vai lá que os mais exigentes e observadores dão-lhe setenta, mas nada mais, além disso. Deve ser a comida que come ou a água que bebe. Talvez os chás de ervas que toma. Mas voltemos ao homem. Foi socorrido por ela e arrastado até uma choupana. Foi cuidado por vários meses tomando chás de folhas, flores, raízes e cascas que só a velha conhecia. Funcionou. O homem restabeleceu-se. Voltou-lhe a sanidade, a saúde, o vigor. Que dizer de sua doença? Voltou ao médico. Novos exames revelaram cura total! Vendeu a casa e voltou para sua terra natal com sua mulher e a ex-escrava. Sim, levou-a também. Levou-a porque ela lhe pediu, pois, como ele, queria retornar às suas raízes. Tudo bem que não era a mesma terra, mas o fato de estar longe de uma cidade grande já era compensador. Ficou sabendo, através de seu paciente, que era uma mulher livre. Riu. Ao chegarem, o homem, não se contendo de contente, correu pelos mesmos campos onde, há décadas atrás, corria de encontro ao vendo. Abraçou e beijou cada árvore. Deitou e rolou na relva. Chorou de felicidade. E, surpresa das surpresas, a ex-escrava, assim que chegou ao local, reconheceu que já passara algum tempo de sua infância naquela região e, ao descobrir um caminho por entre a mata bastante familiar, despediu-se do casal e rumou em direção ao quilombo onde fora levada aos cinco anos de idade! Poderia dizer que os dois visitavam-se com constância a partir de então e passavam tardes agradáveis comendo batatas assadas na brasa e tomando os misteriosos chás que só ela conhecia, mas vamos parar por aqui. Deixemos os dois felizes e satisfeitos. Não o incomodemos mais!
Roberto Policiano

6 de nov. de 2006

Cidades

No centro o largo da Sé e sua catedral.
Na área nobre os exploradores.
Na periferia os explorados.
Casas novas e velhas; grandes e pequenas; ricas, pobres e miseráveis.
Em cada casa a morada de uma emoção.
Alegria;
Tristeza;
Medo;
Coragem;
Timidez;
Desembaraço;
Amor;
Ódio;
Solidão;
Amizade;
Apoio;
Abandono;
Certeza;
Dúvida;
Perdão;
Rancor;
Indiferença;
Entrega.
Grande ou pequena, rica ou pobre, famosa ou desconhecida, todas as cidades são iguais!

Roberto Policiano