Roberto Policiano

13 de nov. de 2006

Às favas com a probabilidade

Encontrei-o enquanto fazia minha caminhada numa certa manhã. Estava estático como uma sentinela e com os olhos fixos em lugar nenhum. Depois disso via-o com uma certa freqüência em pontos diferentes do trajeto que fazia no meu exercício matinal. Na maioria das vezes estava como eu o encontrei pela primeira vez – estático como uma sentinela e com os olhos fixos em lugar nenhum. Num exercício de imaginação, adivinhei a sua vida. Vejo-o, ainda pequeno, correndo com os braços abertos, deixando que o vento batesse em seu rosto, numa espécie de bosque. Perto dali, numa humilde casinha do interior, sua família se abrigava. Cresceu entre as árvores e os animais que sua família criava. Aprendeu com o pai como cuidar dos bichos. Aprendeu com a avó a identificar muitas ervas que poderiam ser utilizadas para tratar da saúde. Sua infância foi feliz ali. Já havia escolhido o lugar onde construiria sua casa quando crescesse e constituísse família. Com o passar dos anos, porém, viu-se obrigado a mudar com a família para um lugar mais promissor. A partir de então não se fixou por muito tempo em nenhuma cidade, até que, já na juventude, chegou à capital, onde a possibilidade de emprego era maior. Estabeleceu-se. Cresceu. Casou. Constituiu família. Trabalhou arduamente. Nunca esqueceu sua cidade natal. A família cresceu. Os filhos casaram-se. Aposentou-se. A expectativa de voltar para sua cidade era grande. Fazia plano e mais plano. Era só terminar uns compromissos financeiros. Questão de meses. Alguns meses passam rápido, dizia para si mesmo. Sentiu um mal estar repentino que o levou ao hospital. O diagnóstico não poderia ter sido pior. Era necessário ficar para iniciar um tratamento que, segundo o médico, seria para o resto da vida. Os compromissos financeiros foram cumpridos, mas o tratamento segurava-o perto do hospital. Desde então vive estático como uma sentinela e com os olhos fixos em lugar nenhum. Ele procura algo. Procura um meio de poder voltar. Sabe que não existe, mas insiste em procurar. Não sente prazer. Não sente alegria. Não tem vontade de continuar. Mas a família, o amigo, o médico, todos insistem para ele continuar com o tratamento. Até quando? Ele sabe a resposta, e isto o deixa revoltado. Sabe que nunca mais verá a sua terra natal.
Quer saber de uma coisa? Para o inferno com a realidade! Às favas com a probabilidade! Vamos ajudar o homem. Vá lá que ele piore. Que seja que um dia, sem lembrar mais o que deseja, anda como um demente à procura do que perdeu. O que ele perdeu já esquecera, mas sabe que perdera algo. Sai desnorteado à procura de algo que nem mesmo ele sabe o quê! Enlouquecera! Virou um andarilho. Passou vários dias desacordado coberto pelo matagal num terreno vazio. Cães lamberam a sua boca. Mas uma velha o achou. Uma ex-escrava que foi levada por outros escravos, há cerca de cento e trinta anos, à idade cinco anos, para um quilombo. Desde então viveu se escondendo na mata para não ser recapturada. Não sabe que a escravidão acabou. Não sabe que todos seus contemporâneos já morreram. Não sei também como ela foi parar ali, a não ser para acudir o nosso homem. Embora tenha centro e trinta e cinco anos de idade, aparenta ter sessenta anos. Vai lá que os mais exigentes e observadores dão-lhe setenta, mas nada mais, além disso. Deve ser a comida que come ou a água que bebe. Talvez os chás de ervas que toma. Mas voltemos ao homem. Foi socorrido por ela e arrastado até uma choupana. Foi cuidado por vários meses tomando chás de folhas, flores, raízes e cascas que só a velha conhecia. Funcionou. O homem restabeleceu-se. Voltou-lhe a sanidade, a saúde, o vigor. Que dizer de sua doença? Voltou ao médico. Novos exames revelaram cura total! Vendeu a casa e voltou para sua terra natal com sua mulher e a ex-escrava. Sim, levou-a também. Levou-a porque ela lhe pediu, pois, como ele, queria retornar às suas raízes. Tudo bem que não era a mesma terra, mas o fato de estar longe de uma cidade grande já era compensador. Ficou sabendo, através de seu paciente, que era uma mulher livre. Riu. Ao chegarem, o homem, não se contendo de contente, correu pelos mesmos campos onde, há décadas atrás, corria de encontro ao vendo. Abraçou e beijou cada árvore. Deitou e rolou na relva. Chorou de felicidade. E, surpresa das surpresas, a ex-escrava, assim que chegou ao local, reconheceu que já passara algum tempo de sua infância naquela região e, ao descobrir um caminho por entre a mata bastante familiar, despediu-se do casal e rumou em direção ao quilombo onde fora levada aos cinco anos de idade! Poderia dizer que os dois visitavam-se com constância a partir de então e passavam tardes agradáveis comendo batatas assadas na brasa e tomando os misteriosos chás que só ela conhecia, mas vamos parar por aqui. Deixemos os dois felizes e satisfeitos. Não o incomodemos mais!
Roberto Policiano

1 Comments:

At 8:13 AM, Anonymous Anônimo said...

Então, quando sai o livro "Crônicas" de Rui Roberto Policiano?

 

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