Café da manhã
Com suas mãos ágeis limpa cuidadosamente cada cantinho da mesa. Num movimento rápido e preciso atira a toalha para o alto ao mesmo tempo em que segura por uma de suas bordas e, enquanto esta cai suavemente em direção à mesa, manobra-a habilmente de modo que o móvel fica perfeitamente coberto. Perfeito para mim, mas não para a dona Matilde, que faz questão que a toalha fique milimetricamente simétrica, assim, dá micronésimas puxadinhas aqui e ali até que seu sorriso indica que, agora sim, está perfeito.
Porcelanas, cristais, talheres e outras vasilhas impecavelmente reluzentes vão ocupando seus lugares precisos com as manobras da eficiente senhora.
Açúcar, café solúvel, leite em pó, manteiga, chás embalados em mimosos saquinhos de seda, pães diversos, biscoitos variados e uma espécie de farofa feita com várias frutas e grãos moídos completarão a primeira refeição, equilibrada e nutritiva, da família.
Assim que dona Matilde se retira começa o falatório em cima da mesa:
- Que privilégio o meu, disse o pão com um indisfarçável orgulho, sou o mais antigo dos alimentos. Estou a milhares de anos nas mesas de reis e de plebeus, alimentando homens, mulheres, crianças, poderosos e anciãos.
O chá, sossegado, escutava de seu lugar.
O café, já esquentando de raiva, disse:
- Cala esta tua boca, seu bolorento! Tu és o mais fraco dos alimentos. Não fossem as outras iguarias te enriquecer as pessoas morreriam secas. Queres é levar a fama com o que os outros fazem. Tu és farinha pura! Eu não gosto de falar de mim, pois a modéstia me impede, mas eu sim tenho história que remonta à grandiosa Arábia, nos tempos de poderosos Xeiques, os verdadeiros soberanos das mais antigas terras habitadas por humanos. Minhas qualidades foram levadas para vários países onde reinei absoluto entre as mais deliciosas bebidas! Portanto, seu esturricado, fique quietinho em seu canto e mantenhas a boca fechada que tu ganhas mais.
E o pão, intimidado, murchou em seu canto.
Enquanto isso, o chá continuava zen em seu lugar.
- Deixe de ser amargo, retrucou a manteiga, deixando sua conhecida maciez de lado, esqueceste de tua vida rústica? Tu és castigado impiedosamente pelo sol e vives coberto de poeira imunda. Por quantos banhos passastes a fim de poder estar aqui conosco? Foi necessário seres passado pelo fogo para que fosses purificado e, visto que isto não foi o bastante, arrancaram-te as peles para te livrar de tua imundície. Além do mais, fostes triturado e torrado a fim de estares entre nós. Quanto a mim, tenho angariado elogios e exclamações de admiração tanto de damas como de cavalheiros por causa do meu requintado sabor. Além do mais, tenho contribuído com minha proteína para fortalecer a humanidade, mas nem por isso vivo dando uma de gostosa!
E o café, embora fervesse de raiva, manteve-se calado em seu canto.
Quanto ao chá, ouvia tranqüilo.
- Alto lá sua sebenta, disse o leite espumando de raiva, estais a vangloriar com aquilo que não é teu.
- Que estais a dizer? Não te enxergas? Tu não passas de um medíocre pó amarelado. Que insinuação é esta que me fazes?
- Ora, pois, então não sabes?
- Onde queres chegar com este teu azedume?
- Não te avisaram que tu és ilegítima? Se não te falaram, eu falo. Tu és um subproduto de minha família. Minha tia-avó teve que ser sacrificada para que tu viesses à existência. A proteína de que tanto vangloriastes não é tua, mas pertence à minha família. Portanto, ponha-te em teu lugar e deixes de ser sebosa! Eu sim posso falar do meu sabor e da minha qualidade, pois sou o verdadeiro alimento, aliás, o primeiríssimo alimento do homem.
A manteiga, ofendida, derreteu-se de chorar.
Já o chá, sereno, permanecia tranquilo.
- Olha só quem fala, disse o açúcar ao leite, tu és tão fraco que, se não fores processado em tempo ou colocado num lugar refrigerado, azedas a ponto de exalar um cheiro insuportável. Pior ainda, deixado só tu apodreces rapidamente. A quantos que, ao te procurarem em busca de alimento para se manterem em vida, não os levaste à morte, não antes de torturá-los impiedosamente por causa das bactérias que trazes contigo? Queres falar de passado? Olhes o meu e te cala! Meu peso já valeu ouro, quando eu, tal qual a diamantes, era vendido em forma de lindos cristais. Levei nações, e até mesmo continentes, a se guerrearem a fim de se apossarem de minha doçura. Eu, por não ser egoísta, empresto meu sabor a muitos alimentos que, modéstia à parte, sem mim nem existiriam. Portanto, nada de arroto azedo para cima de mim!
O leite, sentindo-se acuado, talhou-se em seu canto.
Enquanto isso o chá, mantendo-se calmo, observava tudo.
- Melhor que todos somos nós, gritaram os biscoitos em uníssono. Somos os mais versáteis de todos. Podemos ser doces ou salgados, crocantes ou macios, puros, recheados, ou com coberturas. Somos a alegria das crianças e dos adultos em qualquer parte do mundo. Freqüentamos todas as festas. Não somos, como os demais, restritos a nenhum horário ou ocasião. Somos bem vindos, e até mesmo procurados, em qualquer hora e lugar. Além do mais, emprestamos a todos o nosso mérito. Onde quer que esteja cada um de vós, estarão melhores se estivermos juntos. Em uma mesa qualquer, nos somos os primeiros a serem notados e apreciados.
A mesa virou um reboliço com este último comentário. O leite, o café, o pão, a manteiga, até mesmo a farofa, que, por ser novata, até então não se pronunciara, levantaram suas vozes em protesto. Todos falavam e gesticulavam nervosamente e ao mesmo tempo, até que o badalo persistente do sinete de prata que estava na mesa fez com que todos se calassem. Então o chá, colocando calmamente o sino em seu lugar, disse, suave, tranqüilo e pausadamente:
- Meus amigos, por que esta discussão infrutífera? Lutas, guerras, discórdias, como todos sabem, nunca resolveu nada. Não há nesta mesa ninguém maior ou menor, porque, no fundo, somos todos iguais.
- Como assim? Retrucou cada um deles sem conseguir esconder o descontentamento por ter sido igualado aos demais.- No fundo, no fundo, continuou o chá mais zen do que nunca, cada um de nós não passa de mero pó!
Porcelanas, cristais, talheres e outras vasilhas impecavelmente reluzentes vão ocupando seus lugares precisos com as manobras da eficiente senhora.
Açúcar, café solúvel, leite em pó, manteiga, chás embalados em mimosos saquinhos de seda, pães diversos, biscoitos variados e uma espécie de farofa feita com várias frutas e grãos moídos completarão a primeira refeição, equilibrada e nutritiva, da família.
Assim que dona Matilde se retira começa o falatório em cima da mesa:
- Que privilégio o meu, disse o pão com um indisfarçável orgulho, sou o mais antigo dos alimentos. Estou a milhares de anos nas mesas de reis e de plebeus, alimentando homens, mulheres, crianças, poderosos e anciãos.
O chá, sossegado, escutava de seu lugar.
O café, já esquentando de raiva, disse:
- Cala esta tua boca, seu bolorento! Tu és o mais fraco dos alimentos. Não fossem as outras iguarias te enriquecer as pessoas morreriam secas. Queres é levar a fama com o que os outros fazem. Tu és farinha pura! Eu não gosto de falar de mim, pois a modéstia me impede, mas eu sim tenho história que remonta à grandiosa Arábia, nos tempos de poderosos Xeiques, os verdadeiros soberanos das mais antigas terras habitadas por humanos. Minhas qualidades foram levadas para vários países onde reinei absoluto entre as mais deliciosas bebidas! Portanto, seu esturricado, fique quietinho em seu canto e mantenhas a boca fechada que tu ganhas mais.
E o pão, intimidado, murchou em seu canto.
Enquanto isso, o chá continuava zen em seu lugar.
- Deixe de ser amargo, retrucou a manteiga, deixando sua conhecida maciez de lado, esqueceste de tua vida rústica? Tu és castigado impiedosamente pelo sol e vives coberto de poeira imunda. Por quantos banhos passastes a fim de poder estar aqui conosco? Foi necessário seres passado pelo fogo para que fosses purificado e, visto que isto não foi o bastante, arrancaram-te as peles para te livrar de tua imundície. Além do mais, fostes triturado e torrado a fim de estares entre nós. Quanto a mim, tenho angariado elogios e exclamações de admiração tanto de damas como de cavalheiros por causa do meu requintado sabor. Além do mais, tenho contribuído com minha proteína para fortalecer a humanidade, mas nem por isso vivo dando uma de gostosa!
E o café, embora fervesse de raiva, manteve-se calado em seu canto.
Quanto ao chá, ouvia tranqüilo.
- Alto lá sua sebenta, disse o leite espumando de raiva, estais a vangloriar com aquilo que não é teu.
- Que estais a dizer? Não te enxergas? Tu não passas de um medíocre pó amarelado. Que insinuação é esta que me fazes?
- Ora, pois, então não sabes?
- Onde queres chegar com este teu azedume?
- Não te avisaram que tu és ilegítima? Se não te falaram, eu falo. Tu és um subproduto de minha família. Minha tia-avó teve que ser sacrificada para que tu viesses à existência. A proteína de que tanto vangloriastes não é tua, mas pertence à minha família. Portanto, ponha-te em teu lugar e deixes de ser sebosa! Eu sim posso falar do meu sabor e da minha qualidade, pois sou o verdadeiro alimento, aliás, o primeiríssimo alimento do homem.
A manteiga, ofendida, derreteu-se de chorar.
Já o chá, sereno, permanecia tranquilo.
- Olha só quem fala, disse o açúcar ao leite, tu és tão fraco que, se não fores processado em tempo ou colocado num lugar refrigerado, azedas a ponto de exalar um cheiro insuportável. Pior ainda, deixado só tu apodreces rapidamente. A quantos que, ao te procurarem em busca de alimento para se manterem em vida, não os levaste à morte, não antes de torturá-los impiedosamente por causa das bactérias que trazes contigo? Queres falar de passado? Olhes o meu e te cala! Meu peso já valeu ouro, quando eu, tal qual a diamantes, era vendido em forma de lindos cristais. Levei nações, e até mesmo continentes, a se guerrearem a fim de se apossarem de minha doçura. Eu, por não ser egoísta, empresto meu sabor a muitos alimentos que, modéstia à parte, sem mim nem existiriam. Portanto, nada de arroto azedo para cima de mim!
O leite, sentindo-se acuado, talhou-se em seu canto.
Enquanto isso o chá, mantendo-se calmo, observava tudo.
- Melhor que todos somos nós, gritaram os biscoitos em uníssono. Somos os mais versáteis de todos. Podemos ser doces ou salgados, crocantes ou macios, puros, recheados, ou com coberturas. Somos a alegria das crianças e dos adultos em qualquer parte do mundo. Freqüentamos todas as festas. Não somos, como os demais, restritos a nenhum horário ou ocasião. Somos bem vindos, e até mesmo procurados, em qualquer hora e lugar. Além do mais, emprestamos a todos o nosso mérito. Onde quer que esteja cada um de vós, estarão melhores se estivermos juntos. Em uma mesa qualquer, nos somos os primeiros a serem notados e apreciados.
A mesa virou um reboliço com este último comentário. O leite, o café, o pão, a manteiga, até mesmo a farofa, que, por ser novata, até então não se pronunciara, levantaram suas vozes em protesto. Todos falavam e gesticulavam nervosamente e ao mesmo tempo, até que o badalo persistente do sinete de prata que estava na mesa fez com que todos se calassem. Então o chá, colocando calmamente o sino em seu lugar, disse, suave, tranqüilo e pausadamente:
- Meus amigos, por que esta discussão infrutífera? Lutas, guerras, discórdias, como todos sabem, nunca resolveu nada. Não há nesta mesa ninguém maior ou menor, porque, no fundo, somos todos iguais.
- Como assim? Retrucou cada um deles sem conseguir esconder o descontentamento por ter sido igualado aos demais.- No fundo, no fundo, continuou o chá mais zen do que nunca, cada um de nós não passa de mero pó!
Roberto Policiano
6 Comments:
Só que ninguém se lembra disso infelizmente: sim, somos todos pó. O que fazemos, como agimos é o que nos distingue.
Gostei muito.
Hummm... que imagem sugestiva e apelativa.
Ana, se mais pessoas se lembrasse disso, a humanidade não estaria tão semelhante ao pó! A imagem, de fato, é convidativa! Um grande abraço
Ana, se mais pessoas se lembrasse disso, a humanidade não estaria tão semelhante ao pó! A imagem, de fato, é convidativa! Um grande abraço
Nestes últimos tempos tenho "visitado" com muita frequência os hospitais - vejo gestos que me fazem pensar e acreditar no meu semelhante, mas, o reverso da medalha também tem estado presente. Há pessoas, Roberto, tão desumanas que chegam a assustar-me. E para quê tanta presunção, tanta vontade de status, tanta indiferença perante o sofrimento alheio? O Homem pode ser realmente um bicho.
É, Ana, há coisas que nos fazem perder a esperança. Felizmente há exemplos de pessoas maravilhosas - embora cada vez mais raras- que nos faz acreditar. Um abraço amigo.
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