Vultos
A manhã nasceu encoberta por uma névoa densa e fria. O hálito de minha respiração tornava-se visível assim que entrava em contato com o ar gélido e subia em forma de fumaça. De repente avistei um vulto ao longe na calçada oposta que me chamou a atenção, visto que, a princípio, pensei ter visto um cabide de pedestal com várias roupas penduradas nele. Caminhei com o olhar fixo naquele ponto. Logo percebi meu engano ao descobrir que se tratava de uma mulher que usava um grande casaco para se proteger do frio que fazia. Ainda sorria com o meu engano, quando, para a minha surpresa, o vulto se tornou mais nítido e, como uma nuvem que se transforma ao sabor do vento, aquela senhora desapareceu e, em seu lugar, entrou o que, eu e, creio, ninguém mais, deseja visualizar – um mendigo enrolado num enorme cobertor. A nitidez resultante da aproximação confirmou minha última visão, acrescentando o detalhe de que não era apenas um, mas dois cobertores. Um deles estava jogado nos ombros, como um manto, e o outro com uma das pontas sobre a cabeça do homem e a outra se arrastando no chão, lembrando um imenso véu. Ao chegar um pouco mais perto percebi que o mendigo era dono de uma imensa barba e estava sem camisa. Notei também que o seu corpo estava praticamente coberto por imensas tatuagens. Os cobertores, jogados de modo desleixado sobre seu corpo, deixavam seu peito descoberto deixando à mostra as tatuagens. Não, não eram tatuagens, eram borrões de sujeiras que manchavam todo seu corpo. Sua mão esquerda, que estava imunda, segurava, ao mesmo tempo, as pontas dos cobertores e um pacote de salgadinho barato, enquanto a outra mão, tão suja quando a primeira, era introduzida no pacote de tempos em tempos e trazia os salgadinhos que eram enfiados parcialmente na boca do andarilho. O mais triste de tudo é que não se tratava de uma miragem criada por sombras indistintas no nevoeiro, mas, para meu desassossego, deparei-me naquela manhã nublada com um triste retrato de uma cruel realidade.
Roberto Policiano
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