Descoberta
Três horas e trinta minutos da
manhã e Izidelcio já estava “acordado, vestido, cabelo penteado e barba feita”
como ele gosta de dizer. Girou a chave na fechadura da porta da sala bem
devagar para não acordar dona Efigência e moveu o portão com todo cuidado a fim
de não provocar nenhum ruído. Caminhou lentamente em direção à pracinha da
pequena cidade. Aspirou profunda e demoradamente o ar da madrugada soltando-o
em seguida com a mesma vagarosidade. Gostava de sentir a sensação de tontura
provocada pelo excesso de oxigênio no cérebro. Ao chegar ao seu destino ocupou
um banco de madeira debaixo de um ingazeiro centenário. Dali ele participaria
de um de seus passatempos favorito – testemunhar o despertar de sua cidade
natal. Toda segunda-feira feira é assim, e isso já por vários anos.
Alguns minutos de espera depois
ele olhou à sua direita fixando seus olhos num ponto. Não demorou muito e a
primeira luz doméstica se acendeu. Tal conhecimento corriqueiro provocou um
leve sorriso em nosso observador. Mais uma vez Moreira foi o primeiro, ou
melhor, o segundo cidadão a se levantar.
Sem alterar a direção da cabeça
Izidelcio apenas mudou o foco de seu olhar para um lugar mais distante da rua e
aguardou. Não muito tempo depois a segunda casa do lugar foi iluminada, sinal
de que a rotina estava dentro de sua normalidade na casa da dona Emercinda.
Um giro de noventa graus e o
ajuste preciso de seus olhos fez com que nosso madrugador voltasse sua atenção
para o extremo da cidade a fim de assistir, quase que imediatamente, o acender
da terceira lâmpada doméstica do lugarejo.
Depois de alguns minutos vários
lares da cidadezinha estavam iluminados. Uma sensação de paz e contentamento
tomou conta do ocupante do banco central da pequena praça que, mudando o corpo
de posição, escorou bem as costas no encosto, inclinou a cabeça para trás,
abriu os braços, descansando-os sobre a base do encosto do banco, fechou os olhos,
e se preparou para a próxima experiência gozosa que, como ele conhecia muito
bem, não demoraria a acontecer.
Algum tempo depois nosso cidadão aflou as
narinas e aspirou lentamente a fim de absorver o arome de café coado que
pairava no ar ainda negro da noite, que bem devagar dava lugar à claridade que
chegava. O buquê da bebida fresca penetrou muito mais profundo do que no corpo
material daquele homem, pois vinha carregado de significados, fazendo com que
ele se quedasse inebriado de êxtase. Izidelcio se comportou como um ilustre
convidado sentado à mesa daquelas casas e sorvendo com aquelas famílias um
delicioso café numa espécie de desjejum comunitário. O impacto foi tão profundo
que suas pupilas gustativas entraram em ação e encheu a boca do convidado de
água, que foi engolida com delicadeza, como se fosse uma porção quente da
bebida estimulante. A sensação foi tão prazerosa que as expressões daquele
homem retrataram com exatidão a ‘cara’ da felicidade.
Menos de uma hora depois
Izidelcio arrastou todos os barulhos que ouvia para o ‘pano de fundo’ de sua
percepção auditiva e se preparou para captar os sons que mais lhe interessava
naquele momento. Como que cronometrado numa precisão indescritível, os ouvidos
de nosso espectador detectaram, ainda longe, os primeiros passos abrindo a
jornada da vida dos moradores do local. Um novo sorriso enfeitou a face do
madrugador, que reconheceu as passadas do velho Damasceno que, embora não seja
o primeiro a se levantar, é, na maioria das vezes, o primeiro a ganhar as ruas
da cidade.
Logo várias passadas são
ouvidas em vários pontos do local e se entrecruzando ou se distanciando,
conforme os donos ou donas delas. Izidelcio conhece cada um desses passos, sabe
de onde vem e para onde se dirige. Alguns são apressados, outros moderados. Há
caminhantes que batem os pés firmes no solo, ao passo que outros dão a
impressão de não tocá-lo, pois caminham como se estivessem flutuando. Nosso
espectador, deixando-se levar por aqueles sons, viajou através do tempo e viu a
si próprio nos trajetos que já percorrera até chegar onde está. Lembrou-se de que,
naquela época, corria, como a maioria, atrás de seus planos e, por esta razão,
suas atenções sempre estavam voltadas para o futuro. Ele descobriu muitos anos
depois de uma conversa que tivera com Manolo, Frits, Geraldo, Morais Galdino e
outros amigos de infância, que ele não era o único a viver ‘com o corpo no
presente e a cabeça no futuro’, como eles costumavam dizer. Alguns deles,
desapontados com o resultado de suas vidas, tentavam desesperadamente voltar ao
passado e arrancar de lá a tal felicidade que, embora procurada com
determinação, consegui se esconder todo aquele tempo. Outros, que ainda não
davam por encerrada suas jornadas, discutiam com os primeiros e insistiam que
eles deveriam se concentrar à frente, argumentando que alvos e perspectivas
eram necessários a todos, pois serviam como motores para impulsionar nossas
vidas, imprimindo nelas sentido. Já um terceiro grupo condenava os dois
primeiros argumentando que a felicidade não está nem no passado, que não pode voltar
mais, nem no futuro, que é incontrolável e desconhecido, mas no presente, no
aqui e agora, faziam questão de frisar. ‘Nossas mentes’, arguiam eles, ‘tem que
estar onde nosso corpo está’, e apontavam a harmonia de uma orquestra para
ilustrar o que achavam ser um argumento irrefutável. E uma acalorada discussão
nasceu com cada um dos três grupos defendendo seus argumentos. Izidelcio, que
não tomara partido em nenhum dos lados, por reconhecer que não sabia a resposta
certa, ouviu atentamente os argumentos de cada grupo sem fazer qualquer
julgamento. Ficou confuso com o falatório e, reconheceu que ‘saiu do jeito que
entrou’, com exceção dos conhaques que tomara enquanto assistia aquele debate
acalorado.
Nunca mais havia pensado no
assunto, mesmo porque - acreditava ele - não achava que seria importante
fazê-lo. No entanto, na quietude daquele momento, descobriu uma resposta que
fazia sentido, tendo, como resultado, a formação de um largo sorriso que, se
não movimentou todos, mexeu com a maioria dos músculos de sua face, enquanto
sua mão direita fechou-se automaticamente e socou com seu lado externo sua coxa
direita, ao mesmo tempo em que balbuciou a seguinte expressão:
- É isso!
Depois, admirado com tais
reações involuntárias, ajeitou novamente o corpo contra o encosto do banco que
ocupava e experimentou um relaxamento nunca conseguido por ele antes e, tendo a
convicção de ter descoberto um grande segredo, sorriu de modo audível num
crescente até alcançar uma gargalhada que pareceu brotar da parte mais
recôndita de suas entranhas, culminando com uma imensa sensação de bem-estar
que é impossível ser descrita em palavras.
A claridade já estava tomando
conta do dia quando o aroma do pão assado alcançou as narinas de Izidelcio.
Dando por encerrada sua atividade matinal, ele se levantou tranquilo e se
dirigiu à padaria.
Quando dona Efigência acordou o
café estava acabando de coar e a mesa já estava posta.
Mas que segredo foi este,
afinal? Embora Izidelcio preferisse não alardear sua descoberta, porque,
argumenta ele, é avesso a debates, resolveu contar, não antes de muita
insistência de minha parte. Usando as palavras dele:
‘É como se aquela falação todas
de meus amigos ficasse na minha cabeça trabalhando, trabalhando e trabalhando
todo aquele tempo até chegar numa resposta. Eu nem não sou responsável por
isso, pois eu nem não sabia que estava pensando nestas coisas difíceis de
entender. Minha cabeça ficou pensando sozinha em tudo aquilo e só me avisou do
resultado e, como eu gostei da conclusão que ela chegou, acho que é certo’.
-
E que conclusão chegou a sua cabeça?
-
Bem, ela chegou à conclusão de que a felicidade não
está só no passado, nem só no presente, ou só no futuro, mas está nos três
lugares. Eu posso, por exemplo, visitar o passado, claro que posso! Ele está
registrado na minha cabeça e é possível voltar a ele quantas vezes eu quiser.
Também - e quando eu descobri isso eu fiquei abismado - eu posso visitar o
futuro. Na primeira vez que eu pensei isso eu até achei uma ideia boba. Como é
que alguém visita uma coisa que ainda não aconteceu? Achei até que estava
ficando doido! Mas aquele pensamento ficou martelando na minha cabeça. Então
meu miolo, querendo provar que isso é possível sim, fez com que eu me lembrasse
do rancho que eu mandei construir lá na minha chácara. Quando eu comprei o
lugar era só um terreno. Aí eu decidi construir o rancho. Fiquei imaginando
como é que eu queria que ele ficasse e fiz um desenho no papel. Fui até a casa
do Pereira e pedi pra ele construir do jeito que estava no desenho. Saiu
igualzinho. Então eu percebi que, antes do rancho existir de verdade, eu o
visitei com a minha cabeça, de modo que eu posso sim visitar o futuro, como
não? Pois bem, hoje, se eu quiser, eu posso voltar trinta anos e sentir a
felicidade que eu tive lá atrás, ou posso imaginar algo que vai acontecer dez
anos no futuro e antecipar uma felicidade minha. Visto que eu posso controlar
minhas ideias hoje, consigo sentir essa felicidade agora, neste instante, se
assim eu desejar. Além do mais, posso concentrar minha atenção no momento atual
e sentir a felicidade de algo bom que está acontecendo aqui e agora. Portanto,
meu amigo, a felicidade está no passado, no presente e no futuro à espera de
nossa visita, foi isso o que a minha cabeça descobriu sozinha.
Como as palavras de Izildecio
foram convincentes para mim, nada tenho a acrescentar.
Roberto Policiano
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