Roberto Policiano

29 de mai. de 2013

Espirro



Um grupo de funcionário estava reunido numa sala de treinamento. Um novo produto seria lançado no mercado e os envolvidos estavam recebendo informações, instruções e orientações a fim de melhor atender aos clientes, prováveis consumidores da novidade. O evento já durava cerca de três horas. O ar condicionado e os móveis confortáveis, além da pausa para o café e o lanche contribuíam para que o desgaste físico e mental fosse o menor possível. Cris, uma das responsáveis do treinamento, talvez afetada pelo ar gelado do ambiente, não conseguiu conter um espirro que a interrompeu enquanto discursava. Até aí nada demais. O que chamou a atenção de todos foi a intensidade do fenômeno, principalmente partindo dela, visto que o seu modo de espirrar era peculiar exatamente pelo oposto do que ocorrera, pois, embora a maioria dos seres mortais vocaliza um atchim!, a conferencista quase que sussurrava um psississi. A discrição do ato fazia com que só os muitos próximos dela, desde que estivessem olhando para a mesma, percebessem o gesto natural. No entanto, naquele evento, todos, inclusive a própria, se assustaram com o retumbante e ensurdecedor KABRUMMMMM resultante do espirro da moça, que, impressionada com aquela ação bombástica, ruborizou-se quase que instantaneamente. O esclarecimento do fato veio em alguns segundos, quando outro barulho, tão violento quanto o primeiro, abalou os tímpanos dos presentes. Só então o grupo percebeu que chovia torrencialmente naquele momento. Imediatamente o silêncio foi quebrado novamente, desta vez pela gargalhada coletiva dos presentes, inclusive da autora do espirro. O som do primeiro trovão coincidiu nos milésimos de segundo no momento em que nossa protagonista foi vencida pelo ato de espirrar. Como o ambiente hermeticamente fechado impedia que os presentes soubessem da tempestade, criou-se a confusão já mencionada. Desde então o espirro de nossa Cris não passou despercebido pelos colegas de trabalho, se tornando, a partir daquele momento, além de o mais silencioso, o mais engraçado espirro da empresa.
 
Roberto Policiano

23 de mai. de 2013

Mais valia




Cinco horas e dez minutos,

Despertador;

Cinco horas e vinte e sete minutos,

Banho;

Cinco horas e cinquenta e quatro minutos,

Condução;

Seis horas e trinta e um minutos,

Metrô;

Sete horas e dois minutos,

Escritório;

Sete horas e trinta e nove minutos,

Café;

Doze horas e dezessete minutos,

Almoço;

Treze horas e doze minutos,

Computador;

Dezesseis horas e dezoito minutos

Conduções;

Dezessete horas e cinquenta e dois minutos,

Casa.

De segunda-feira à sexta-feira;

De janeiro a dezembro;

Ano após ano.

Mas tem você;

Seu sorriso;

Seu abraço;

Sua voz;

Seus olhos;

Sua boca;

Sua pele;

Seu calor...
 
 
Roberto Policiano

16 de mai. de 2013

Estação Pinheiros



O trem encosta na plataforma e assim que suas portas são abertas multidões de pessoas saem das trinta e duas aberturas da composição e se misturam, tecendo uma trança viva. Para um observador de cima é uma visão interessante; para os passageiros uma corrida contra o tempo, pois tem que percorrer um espaço significativo, subindo e descendo escadas rolantes ou fixas, driblando aqueles com menos pressa ou com dificuldade de locomoção, a fim de alcançar a próxima etapa da viagem, na linha amarela do metrô; é, também, para aqueles que pela primeira vez depara com este frenesi, um momento de desespero, pois não tem a mínima ideia do trajeto a seguir e todos em sua volta estão apressados demais para parar e orientar, sem contar o fato do perigo de ser atropelado pela multidão apressada.

Entre os milhares de passageiros – milhares não é uma expressão vazia, mas a contagem real das pessoas – um deles chamou minha atenção. O rapaz, embora carregasse uma mochila nas costas, uma pasta na mão direita e um canudo de mais ou menos um metro de comprimento - daqueles que carregam desenhos cuidadosamente enrolados e protegidos - andava como a mesma pressa, ou pelo menos tentava andar, do que aqueles que não carregavam nada nas mãos. Apesar das bagagens que levava ziquezagueava entre as pessoas, indicando que seu horário estava no limite. Em seu caminho encontrou com uma senhora, tão carregada quando ele, mas com um diferencial – não tinha absolutamente nenhuma intenção de correr, pois, pelo seu caminhar, tinha todo o tempo do mundo para chegar ao seu destino.  Como os dois se encontraram num bloco compacto de pessoas, não foi possível qualquer manobra de ultrapassagem de modo que ele seguiu no passo dela. Em determinado momento o jovem, adiantando o passo um milionésimo de segundo mais rápido do que a passageira à sua frente, esbarrou seu pé do calcanhar dela, que olhou para trás com uma expressão fulminante para o moço, que se desculpou pelo ocorrido. Procurando sair dali a fim de não repetir o incidente, ele deu uma guinada à esquerda, num ângulo de cento e trinta e sete graus, à moda de caranguejo, andando meio de lado, e tentou contornar a multidão. Esbarrões, cutucões, pisadelas, pedidos de desculpas, impropérios, foram alguns dos resultados conseguidos por ele, menos o avanço do espaço, pois todos se afunilavam para a escada rolante que dava acesso para os pisos inferiores da estação do metrô. Como não havia alternativa andou pacientemente a passo de pinguim – apelido dado pelos próprios usuários do sistema, pois as pessoas andam arrastando os pés centímetros a centímetros enquanto o corpo balança como um pêndulo, lembrando tais pássaros. Para um observador que avistasse a cena de cima a multidão lembraria ainda a areia de uma ampulheta acumulada no gargalo enquanto flui lentamente para a base de baixo.

Alguns minutos depois, quando nosso passageiro  já chegava perto da escada rolante, deparou-se com uma senhora carregada de bagagens que lhe cortou a frente. Ele não podia acreditar, pois lhe pareceu ser a mesma mulher que o fez contornar aquelas pessoas a fim de ganhar alguns segundos. Sua suspeita foi confirmada quando ela, depois de ganhar a posição naquela corrida matinal olhou para ele e, depois de medi-lo de alto a baixo, alertou-o num tom rouco:

- Você de novo? Vê se não encosta!
 
 
Roberto Policiano

9 de mai. de 2013

Atos de A a Z



Vou falar de ato a ato

Não tema que eu não bato

Mas se tentar fugir eu cato

Para não esquecer eu dato

E se desfizer eu reato

Só creio naquilo que é fato

Se precisar, fujo como um gato

Pois sou ligeiro e não tenho pé chato

Faço tudo de imediato

Se eu tenho pressa vou de jato

*Se o obstáculo é grande eu uso um Kato

Pois não sou estreito, mas lato

Não importa se na cidade ou no mato

Este meu jeito de ser é nato

Eu não sigo nenhum boato

Pois não quero pagar o pato

**para melhorar meu site adquiri o Qato

Eu nuca agi como um rato

Se der qualquer nó, eu desato

Faço tudo, no entanto, com muito tato

***Para não ter que me esconder em Uato

Afinal de contas, não sou nenhum novato

****Nunca sintonizei a rádio WATO

E como sempre procuro ser exato,

*****Não sou um artista como o Yato

******Por fim, vou ao Dallas saborear o sushi do Zato.

 
Roberto Policiano
 

 

* Kato – Equipamentos para serviços de terraplenagens e similares

** Qato – software de suporte para network

*** Uato – Lugarejo em Guiné-Bissau

****WATO – Estação de rádio de Tennessee, EUA (extinta?).

***** John Yato –Desenhista japonês que trabalha há sessenta anos nos EUA, famoso por seu estilo versátil.

****** Zato – Restaurante especializado em comidas japonesas localizado em Dallas, Texas, EUA.

2 de mai. de 2013

De ponta cabeça



É madrugada. Precisamente três horas da manhã. Ainda não conseguira dormir. O calor incomodava. Rolava na cama. Já havia levantado umas cinco vezes. Resolveu sair até a sacada do apartamento a fim tentar se refrescar com alguma brisa. Lá fora o ar estava estagnado e morno. Olhou em direção ao céu na intenção de perscrutar o infinito. Não entendia muito de estrelas, mas resolveu admirá-las. Espantou-se com as poucas que encontrara. Para onde foram? Olhou para baixo e não pode deixar de perceber o contraste. Milhares de luzes enfeitavam a escuridão da noite. De várias cores e intensidades, ofertavam brilhos à abóboda celeste. “Estranho”, pensou, “é como se a Cidade estivesse de cabeça para baixo”. “Sim”, continuou, “parece que as estrelas foram parar no chão”. Lembrou-se então das várias fotos noturnas de lugares de várias partes do planeta que vira. Em todas elas aparecia o mesmo fenômeno. “Pelo jeito”, concluiu, “ O mundo inteiro ficou de ponta cabeça”. Percebendo que ali estava mais agradável de estar, entrou em casa e, depois de tomar um copo de água gelada, voltou à sacada carregando uma cadeira de praia. Resolvera passar o resto da noite admirando as raras estrelas que estavam visíveis. Ajeitou-se confortavelmente, encostou a cabeça sobre uma almofada que trouxera junto e passou a observar o céu. Dentro de cinco minutos estava em poder de um sono profundo. Imagino que tivera os sonhos mais iluminados de toda sua vida.
 
 
Roberto Policiano