Roberto Policiano

25 de jun. de 2014

Atrás da porta




Quem conhecesse o Doutor Serafim não acreditaria na transformação que ele sofrera. Um homem com personalidade forte, enérgico, extremamente exigente e que não admitia ser contrariado quando administrava com mão de ferro o hospital já por mais de quarenta anos, se tornou num moribundo quase desencarnado que já não andava, apenas arrastava as pernas lentamente enquanto era apoiado por alguém. Fora lesado assim por um problema pulmonar, e para ajudá-lo na recuperação, mudara-se temporariamente para um castelo da família construído numa região serrana, cujo clima era propício para quem sofria de problemas respiratórios. Sua esposa o acompanhou a fim de atuar como enfermeira – pois ela era, de fato, uma. O marido havia desistido de viver, portanto sua mulher tinha que convencê-lo a tomar os remédios prescritos, que ele os tomava apenas para agradá-la. Fora colocado em um quarto cuja visão dava para o mar e uma encosta pedregosa onde as ondas rebentavam ruidosamente e provocava um espetáculo de espumas. Havia uma sacada de onde o doente poderia assistir ao espetáculo da natureza confortavelmente sentado em uma poltrona reclinável. Uma porta separava o aposento da varanda.

Certa vez, enquanto descansava na poltrona, Serafim observou que a porta era entalhada, percebendo ali uma obra de arte. Ela estava pintada de verde, mas as intempéries e o tempo contribuíram para arrancar a maior parte da tinta ou desbotá-la aqui e acolá. Além do mais, a poeira acumulada de meses escondia a sua beleza. Curioso, o homem foi examiná-la mais de perto. Não contente com isso, pediu que lhe trouxessem uma espátula e algumas lixas. Iniciando o trabalho sem muito entusiasmo o ancião começou a livrar aquela prancha de madeira dos restos de sua cobertura. No entanto, com o passar do tempo, ficou cada vez mais empolgado com as descobertas. Foi à internet e pesquisou sobre o modo correto de recuperar uma peça de madeira e, de posse de tais informações, solicitou outras ferramentas e alguns materiais que contribuiriam para remover a tinta velha. Percebeu que por baixo da tinta verde havia outras três cores diferentes. A esposa, a princípio, ficou preocupada com a nova atividade do marido, principalmente porque isso o colocaria em contato com poeira, tintas velhas e solventes químicos, sem contar o esforço do trabalho braçal. No entanto, ao notar o entusiasmo crescente dele, percebeu que ele descobrira um “para quê” e aquiesceu, embora isso significasse um cuidado extra com o doente. Enquanto o ex-diretor executava seu novo serviço foi levado ao passado por sua imaginação, onde “viu” o artesão trabalhando na peça que ele agora se empenhava em recuperar. “Descobriu” um escravo artista, brutamente tratado pelo seu dono, que, não contente com o tempo gasto no entalhe da madeira, “pagava” o serviço do desgraçado com chibatadas no fim do dia para que ele fosse mais ligeiro e deixasse de fazer “corpo mole” com suas obrigações. O infeliz não respondia, mesmo porque não tinha permissão para fazê-lo e, sabendo que se ousasse em dirigir a voz àquele que tinha o título de propriedade de sua pessoa, poderia ser colocado no pelourinho e ter o couro do corpo arrancado, resignava-se a responder “sim senhor, meu patrão, sim senhor”. Porém o restaurador, sentindo repulsa pelo que acabara de imaginar, e condenando a si próprio, forçava a imaginação para ver um senhorio bondoso que cuidava bem de seu artista e lhe fornecia um ambiente de trabalho digno, além de generosa recompensa financeira pela obra de arte que nascia das mãos calejadas do artesão. O Doutor Serafim riu um sorriso triste, como que duvidando de sua última “visão”, mas procurava, mesmo descrente, manter a última imagem em seus pensamentos. Quando caiu em si percebeu que lágrimas rolavam de seu rosto e assustou-se com isso, pois até então fora uma pessoa insensível com os sentimentos alheios.
Aproveitando o envolvimento do marido com a nova atividade, sua esposa - e também enfermeira - usava isso como convencimento da ingestão dos medicamentos, lembrando ao moribundo que, se ele quisesse ver seu trabalho terminado, precisava estar vivo e os remédios o ajudariam nisso. Porém, com o passar do tempo e o progresso da empreitada o homem já não precisou mais ser lembrado dos – agora benditos – comprimidos, pois sabia dos horários e solicitava-os à sua mulher, que prontamente o atendia.

           Depois de trabalhar arduamente durante vários meses o madeiro surgiu nu e natural diante dos olhos descrentes do antigo moribundo, pois os últimos exames – que ele teve que ser convencido a abandonar sua atividade para ir ao hospital a fim de submeter a eles – revelaram o recuo da doença e o fortalecimento do organismo. Isto o fez mudar de planos, pois sua intenção inicial era revestir a porta com verniz, mas agora, diante daquele madeiro preservado por séculos – e isto não é uma expressão idiomática – sentiu-se endividado pelo artesão da peça, e, talvez, para recompensá-lo pelos maus tratos e indiferenças, ou melhor - pensou o homem com renovada descrença – para acrescentar o valor e o reconhecimento já recebidos pelo artista original, resolveu manter a madeira em seu estado natural e, ao invés de envernizá-la, decidiu encerá-la. Nova pesquisa indicou a melhor cera e o melhor método de aplicá-la - assunto posto em execução imediatamente. A nova etapa do trabalho começou com ele lixando a prancha. Os tipos de lixas, suas sequências e frequências de usos, além dos movimentos apropriados, foram cuidadosamente estudados e executados. Como resultado aquela peça, que o restaurador descobriu para sua surpresa e alegria, fora esculpida em uma única tábua - o que aumentou a dívida do trabalhador para com a árvore que deu a sua vida para a fabricação da porta - deixou que o homem descobrisse a maciez de sua pele ao toque atento e gentil do último artista a tocar com maestria o miolo do velho tronco.
         Meses depois, estando restaurado tanto o homem quanto a porta, uma cerimônia foi organizada por ele e sua fiel companheira a fim de apresentar aos amigos e parentes a obra de arte escondida atrás das velhas tintas. O artesão atual falava com entusiasmo e orgulho de cada etapa de seu trabalho, dos custos envolvidos, tanto financeiro como de tempo e dedicação e de cada descoberta descortinada diante de si. Uma das convidadas, sobrinha do artista restaurador, depois de olhar com desinteresse o resultado final do trabalho, comentou:

            - Não seria mais fácil e menos oneroso pintar a porta de verde?

            O artista não respondeu, apenas sorriu e, para seu próprio espanto, não foi um sorriso de desdém, mas de compreensão. Um de seus velhos amigos, que acompanhava atentamente e com gozo cada palavra e explicação do anfitrião, e que o conhecia como ninguém, inclusive de suas respostas ácidas e ríspidas quando contrariado, admirou-se da reação do colega e, virando-se para o companheiro ao lado, que conhecia o palestrante tão bem quanto ele, sussurrou:

            - Esta porta curou o nosso amigo Serafim com muito mais profundidade do que eu imaginei.

            O outro, compreendendo o seu interlocutor, respondeu por balançar vagarosamente sua cabeça indicando total concordância com o que acabara de ouvir.



Roberto Policiano

18 de jun. de 2014

Fim da festa

 




Acabou a festa

Não se comemora

Já não há seresta

Nem som de viola

 

O céu ficou cinza

O horizonte turvo

Mesmo que eu finja

Os meus ombros encurvo.

 

Não ouço mais tango

Nem canto meu samba

E Já não danço a valsa.

 

Qual orangotango

Numa corda bamba

Bailo a dança falsa.
 
 
Roberto Policiano

11 de jun. de 2014

WI-FI



Coriolando nasceu, cresceu e se formou numa cidade pacata do interior. Lá estudou e aprendeu a lidar com os afazeres da fazenda onde morava. Não havia serviço que ele não soubesse ou não gostasse de fazer na propriedade de sua família. Manobrava o trator com habilidade, mesmo nos terrenos mais íngremes e escorregadios. Sabia como poucos a "pilotar" a colheitadeira e fazia isso com prazer. Dirigia o caminhão carregado de produtos cultivados e colhidos em suas terras com uma alegria que era contagiante. Não havia lugar que não chegasse quando conduzia sua pick up com tração nas quatro horas, sendo ele o designado para buscar bezerros recém-nascidos e  as vacas que pariram para o conforto do curral. Não sentia nenhum atrativo pelos computadores, aliás, repelia-os veementemente, dizendo que: 'tal máquina era para quem quer fugir do trabalho de verdade, onde se usava a força dos braços e toda a energia do corpo para arrancar o pão do solo e cuidar dos animais'. Por causa disso nem chegava perto do 'instrumento preferido dos desocupados ou fracos' - como fazia questão de dizer entre risos de deboche. O rapaz amava o seu lugar e não o trocava por nenhum outro. Os finais de semana passava com os amigos entre jogos e brincadeiras e passeios a cavalo. Rodeios e Exposições, fosse qual fosse o tema, só o atraia quando aconteciam em sua cidade. Há muito era convidado a conhecer outras paragens, mas sempre respondia que sua vila lhe oferecia tudo que era necessário e resistia a qualquer tentativa para sair do seu lugar. Mas quanto mais ele dizia não, mais os amigos e parentes insistiam e com intensidade cada vez mais crescente, até que, 'para satisfazer a necessidade de outros e não as suas' - como fez questão de frisar, resolveu acabar com aquela pressão e foi visitar uma cidade diferente, distante cerca de mil quilômetros de sua região, o que envolveu viajar de avião, onde ele embarcou tranquilamente, do mesmo modo que montava em seu alazão, 'porque', disse ele, 'homem que é homem não tem medo de nada'.

Ao chegar à cidade onde fora obrigado a visitar, foi a um restaurante a fim de saborear uma comida diferente, embora garantisse que não havia alguém no mundo que cozinhasse melhor do que sua mãe. Entrando no recinto percebeu um letreiro luminoso que comunicava: "Temos Wi-fi".

De computador ele não sabia nada, mas, como tinha um tio chamado Walter, um primo de nome Waldomiro e era amigo do Waldemar desde os tempos da escola primária, sabia que o dáblio se pronunciava com o som da letra V, de modo que leu mentalmente a informação assim: "Temos Vi-fi".

 Seguiu o recepcionista que, depois de consultá-lo sobre sua preferência, levou-o a uma mesa de onde se poderia ver a cidade. Um cartaz numa das paredes reafirmava o letreiro na entrada: "Temos Wi-fi", que o cliente leu em silêncio como fez da primeira vez.

Ao receber o cardápio percebeu que na parte superior de sua capa o restaurante insistia em comunicar que o ambiente dispunha Wi-fi, que para ele era Vi-fi e pronto! Ao notar a insistência em comunicar tal novidade, nosso homem esboçou um discreto sorriso de ironia.

Um diferencial da casa era que o cliente montava seu próprio prato de acordo com seu paladar. Quando foi informado disso o rapaz fez a seguinte combinação dos alimentos disponíveis:

- Quero uma porção de arroz à grega; batatas sauté, anéis de cebolas douradas na manteiga e, cedendo à insistência da casa, um Vi-fi à parmegiana.

Ainda bem que o atendente era um pouco surdo. Como resultado foi servido ao cliente um suculento filé mignon à parmegiana.

Até hoje ele comenta para os seus que a única vantagem da viagem forçada fora a boa carne servida naquela refeição!
 
 
Roberto Policiano

4 de jun. de 2014

Sincronia



 
Abaixem o som dos motores dos carros;

Desliguem o movimento da cidade;

Cortem a luminosidade do sol;

Não interrompam o sono do meu amor.

 

Deixe-me contemplar o seu rosto sereno;

Admirar seus cabelos desalinhados;

Afagar delicadamente o seu rosto

E sentir sua pele amalgamada à minha.

 

Quero sentir a tepidez de seu corpo;

Sincronizar minha respiração à sua;

Pegar uma carona em seu suave sono,

 

E, como que surfando juntos a mesma onda,

Molhados nas águas da mesma aventura,

Anseio sonhar os seus mesmíssimos sonhos.



Roberto Policiano