Atrás da porta
Quem conhecesse o Doutor Serafim não acreditaria
na transformação que ele sofrera. Um homem com personalidade forte, enérgico,
extremamente exigente e que não admitia ser contrariado quando administrava com
mão de ferro o hospital já por mais de quarenta anos, se tornou num moribundo
quase desencarnado que já não andava, apenas arrastava as pernas lentamente
enquanto era apoiado por alguém. Fora lesado assim por um problema pulmonar, e
para ajudá-lo na recuperação, mudara-se temporariamente para um castelo da
família construído numa região serrana, cujo clima era propício para quem
sofria de problemas respiratórios. Sua esposa o acompanhou a fim de atuar como
enfermeira – pois ela era, de fato, uma. O marido havia desistido de viver,
portanto sua mulher tinha que convencê-lo a tomar os remédios prescritos, que
ele os tomava apenas para agradá-la. Fora colocado em um quarto cuja visão dava
para o mar e uma encosta pedregosa onde as ondas rebentavam ruidosamente e
provocava um espetáculo de espumas. Havia uma sacada de onde o doente poderia
assistir ao espetáculo da natureza confortavelmente sentado em uma poltrona
reclinável. Uma porta separava o aposento da varanda.
Certa vez, enquanto descansava na
poltrona, Serafim observou que a porta era entalhada, percebendo ali uma obra
de arte. Ela estava pintada de verde, mas as intempéries e o tempo contribuíram
para arrancar a maior parte da tinta ou desbotá-la aqui e acolá. Além do mais,
a poeira acumulada de meses escondia a sua beleza. Curioso, o homem foi
examiná-la mais de perto. Não contente com isso, pediu que lhe trouxessem uma
espátula e algumas lixas. Iniciando o trabalho sem muito entusiasmo o ancião
começou a livrar aquela prancha de madeira dos restos de sua cobertura. No
entanto, com o passar do tempo, ficou cada vez mais empolgado com as
descobertas. Foi à internet e pesquisou sobre o modo correto de recuperar uma
peça de madeira e, de posse de tais informações, solicitou outras ferramentas e
alguns materiais que contribuiriam para remover a tinta velha. Percebeu que por
baixo da tinta verde havia outras três cores diferentes. A esposa, a princípio,
ficou preocupada com a nova atividade do marido, principalmente porque isso o
colocaria em contato com poeira, tintas velhas e solventes químicos, sem contar
o esforço do trabalho braçal. No entanto, ao notar o entusiasmo crescente dele, percebeu que ele descobrira um “para quê” e aquiesceu, embora isso
significasse um cuidado extra com o doente. Enquanto o ex-diretor executava
seu novo serviço foi levado ao passado por sua imaginação, onde “viu” o artesão
trabalhando na peça que ele agora se empenhava em recuperar. “Descobriu” um
escravo artista, brutamente tratado pelo seu dono, que, não contente com o
tempo gasto no entalhe da madeira, “pagava” o serviço do desgraçado com
chibatadas no fim do dia para que ele fosse mais ligeiro e deixasse de fazer
“corpo mole” com suas obrigações. O infeliz não respondia, mesmo porque não
tinha permissão para fazê-lo e, sabendo que se ousasse em dirigir a voz àquele
que tinha o título de propriedade de sua pessoa, poderia ser colocado no
pelourinho e ter o couro do corpo arrancado, resignava-se a responder “sim senhor,
meu patrão, sim senhor”. Porém o restaurador, sentindo repulsa pelo que acabara
de imaginar, e condenando a si próprio, forçava a imaginação para ver um
senhorio bondoso que cuidava bem de seu artista e lhe fornecia um ambiente de
trabalho digno, além de generosa recompensa financeira pela obra de arte que
nascia das mãos calejadas do artesão. O Doutor Serafim riu um sorriso triste, como
que duvidando de sua última “visão”, mas procurava, mesmo descrente, manter a
última imagem em seus pensamentos. Quando caiu em si percebeu que lágrimas
rolavam de seu rosto e assustou-se com isso, pois até então fora uma pessoa
insensível com os sentimentos alheios.
Aproveitando o envolvimento do marido com a nova atividade, sua esposa - e também enfermeira - usava isso como convencimento da ingestão dos medicamentos, lembrando ao moribundo que, se ele quisesse ver seu trabalho terminado, precisava estar vivo e os remédios o ajudariam nisso. Porém, com o passar do tempo e o progresso da empreitada o homem já não precisou mais ser lembrado dos – agora benditos – comprimidos, pois sabia dos horários e solicitava-os à sua mulher, que prontamente o atendia.
Aproveitando o envolvimento do marido com a nova atividade, sua esposa - e também enfermeira - usava isso como convencimento da ingestão dos medicamentos, lembrando ao moribundo que, se ele quisesse ver seu trabalho terminado, precisava estar vivo e os remédios o ajudariam nisso. Porém, com o passar do tempo e o progresso da empreitada o homem já não precisou mais ser lembrado dos – agora benditos – comprimidos, pois sabia dos horários e solicitava-os à sua mulher, que prontamente o atendia.
Depois de trabalhar arduamente durante vários
meses o madeiro surgiu nu e natural diante dos olhos descrentes do antigo
moribundo, pois os últimos exames – que ele teve que ser convencido a abandonar
sua atividade para ir ao hospital a fim de submeter a eles – revelaram o recuo
da doença e o fortalecimento do organismo. Isto o fez mudar de planos, pois sua
intenção inicial era revestir a porta com verniz, mas agora, diante daquele
madeiro preservado por séculos – e isto não é uma expressão idiomática –
sentiu-se endividado pelo artesão da peça, e, talvez, para recompensá-lo pelos
maus tratos e indiferenças, ou melhor - pensou o homem com renovada descrença –
para acrescentar o valor e o reconhecimento já recebidos pelo artista original,
resolveu manter a madeira em seu estado natural e, ao invés de envernizá-la,
decidiu encerá-la. Nova pesquisa indicou a melhor cera e o melhor
método de aplicá-la - assunto posto em execução imediatamente. A nova etapa do
trabalho começou com ele lixando a prancha. Os tipos de lixas, suas sequências e
frequências de usos, além dos movimentos apropriados, foram cuidadosamente
estudados e executados. Como resultado aquela peça, que o restaurador
descobriu para sua surpresa e alegria, fora esculpida em uma única tábua - o
que aumentou a dívida do trabalhador para com a árvore que deu a sua vida para a
fabricação da porta - deixou que o homem descobrisse a maciez de sua pele ao
toque atento e gentil do último artista a tocar com maestria o miolo do velho
tronco.
Meses depois, estando restaurado tanto o homem quanto a porta, uma
cerimônia foi organizada por ele e sua fiel companheira a fim de apresentar aos
amigos e parentes a obra de arte escondida atrás das velhas tintas. O artesão atual
falava com entusiasmo e orgulho de cada etapa de seu trabalho, dos custos
envolvidos, tanto financeiro como de tempo e dedicação e de cada descoberta
descortinada diante de si. Uma das convidadas, sobrinha do artista restaurador,
depois de olhar com desinteresse o resultado final do trabalho, comentou:
-
Não seria mais fácil e menos oneroso pintar a porta de verde?
O
artista não respondeu, apenas sorriu e, para seu próprio espanto, não foi um
sorriso de desdém, mas de compreensão. Um de seus velhos amigos, que
acompanhava atentamente e com gozo cada palavra e explicação do anfitrião, e
que o conhecia como ninguém, inclusive de suas respostas ácidas e ríspidas quando
contrariado, admirou-se da reação do colega e, virando-se para o companheiro ao
lado, que conhecia o palestrante tão bem quanto ele, sussurrou:
-
Esta porta curou o nosso amigo Serafim com muito mais profundidade do que eu
imaginei.
O
outro, compreendendo o seu interlocutor, respondeu por balançar vagarosamente
sua cabeça indicando total concordância com o que acabara de ouvir.
Roberto Policiano
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