Roberto Policiano

30 de out. de 2006

O Novato

Tinha seus vinte e três anos. Há três meses trabalhava na empresa. Fora chamado no dia anterior ao gabinete do gerente de sua divisão e, surpresa das surpresas, deveria representar a empresa numa reunião executiva. Estava nervoso. Levantou às cinco horas da manhã, embora a reunião estava marcada para as 10 horas. Escolheu seu melhor terno. Caprichou no visual. Oito horas em ponto saiu de casa. O trânsito estava caótico. O nervosismo era evidente. Estava um calor infernal! Os termômetros deveriam marcar, àquela hora da manhã, 35°C, mas a sensação que ele tinha é que estava pelo menos 78°C. Suava profusamente. Conseguiu achar um estacionamento vazio a cinco quadras do local onde aconteceria a reunião. Resolveu caminhar. Arrependeu-se.
O calor estava causticante.
Chegou com a camisa molhada de suor. Procurou um bebedouro. Tomou pelos menos quatro copos de água. Faltavam quarenta minutos para o início da reunião. Resolveu escolher uma cadeira numa posição discreta, para não ficar em evidência. Enquanto esperava decidiu reler os documentos que forneciam os dados que precisaria. O calor incomodava. Como estava sozinho, resolveu tirar os sapatos. Ah! Que alívio!
Aos poucos as pessoas foram chegando e ocupando as cadeiras remanescentes. Ele continuava absorto em seus documentos, talvez mais como uma desculpa para não encarar os outros do que se informar, pois aqueles dados ele conhecia de cabeça. Dez minutos antes do início da reunião todas as cadeiras já estavam ocupadas e algumas pessoas esperavam em pé. Cadeiras adicionais foram introduzidas na sala, de modo que a sala de reunião foi reorganizada para que todos sentassem. Só então se lembrou que tirara os sapatos! Mas, para seu desespero, não teve chance de colocá-los, pois, seguindo a movimentação imposta pelas danças das cadeiras, teve que se levantar e levar sua cadeira à direita para que uma outra fosse colocada junto à mesa. Resultado – seus sapatos ficaram para trás! Era urgente, extremamente urgente que ele os recuperasse, no entanto, como é perfeitamente compreensivo, queria fazê-lo o mais discreto possível. A partir de então, o mais importante para ele era resgatar seus sapatos sem que ninguém percebesse.
Começou a reunião. Aproveitou a deixa para tentar sua primeira tentativa. Para facilitar o resgate tirou a meia do pé esquerdo, disfarçadamente, e guardou-a no bolso. Iniciou seu intento. Sentou bem na ponta da cadeira e esticou a perna para agarrar um dos sapatos entre o dedão e o dedo vizinho. Faltou perna. Colocou uma das mãos na ponta da cadeira e, afundando um pouco por baixo da mesa, fez nova tentativa. Sentiu o sapato roçar na sola do pé. Procurou sua borda e, fazendo do pé um alicate, preparou-se para arrastá-lo até si. Neste momento ele sentiu uma mão acariciar sua orelha. Só então se deu conta que, para alcançar seu objetivo, esticou sua cabeça para o lado direito, repousando-a gentilmente nos ombros da senhora que estava ao seu lado. Embora ficasse sem graça, não desgarrou o sapato e, enquanto procurava se ajeitar na cadeira, arrastava-o para perto de si, ao mesmo tempo em que sussurrava uma desculpa à senhora, alegando uma câimbra repentina. A gentil senhora, com o rosto iluminado por um sorriso e um certo brilho do olhar, respondeu-lhe também num sussurro:
- Não se preocupe, meu jovem, vivo passando por isso também.
- Obrigado por sua compreensão!
- A propósito, gostei do teu perfume!
- Obrigado!
- Ele é tão... tão...
- Sim!
- Tão voluptuoso!
- Desculpe se a incomodei, disse ele sem graça.
- Não incomodou em nada, meu jovem.
- Obrigado!
- Mas que ele é, pode ter certeza que é!
- Como?
- Voluptuoso!
Ele não respondeu, mesmo porque, não saberia como fazê-lo. Limitou-se a lhe sorrir um sorriso de pedidos de desculpas e terminar de se ajeitar na cadeira.
Meia tarefa estava cumprida. “Pescara” o sapato do pé direito. Calçou-o. Tomou fôlego. Deu uma golada no café que lhe fora colocado pelo copeiro. Era preciso prestar atenção na reunião, mas, para ele, era mais importante ainda alcançar o outro pé de sapato e acabar com aquela agonia. Segurou novamente a borda da cadeira e, já com os dedos dos pés abertos, voltou à “pesca”. Teve sorte em atingir o seu objetivo na primeira tentativa, mas, como no lance anterior, bandeou para o lado de sua vizinha de mesa e, azar dos azares, enfiou seu cotovelo na xícara de café da bondosa senhora. Ganhou uma dor miserável no joelho esquerdo ao batê-lo violentamente na borda da mesa quando tentou se ajeitar rapidamente – ato instintivo que teve assim que enfiou o cotovelo em lugar impróprio; uma tremenda dor nas costas com todo este show de contorcionismo; uma imensa mancha no seu terno preferido; e a atenção de todos os presentes. Sentiu-se na obrigação de desculpar-se:
- Perdão! Tive uma câimbra repentina!
- Já é a segunda, meu jovem, disse-lhe a boa senhora, precisa de mais potássio. Come bananas que ajuda.
- Obrigado pela dica. Vou me lembrar disso.
Uma copeira limpou imediatamente a mesa, recolheu a xícara, e trouxe um outro café para a senhora. Felizmente para o novato, todos aceitaram o incidente como algo comum e a reunião foi reiniciada sem nenhum problema. Sentindo-se aliviado e ao mesmo tempo vitorioso por sair daquela situação constrangedora, tratou de calçar o sapato recuperado. Mas, quando foi ajeitá-lo calçá-lo, a surpresa – era um sapato feminino! Tentar fazer a troca estava fora de cogitação. O melhor a fazer seria calçar aquele sapato mesmo e esperar pelo final da reunião. Com certeza a dona dele ficaria feliz de fazer a troca.
Cinqüenta minutos depois a reunião foi encerrada. Enquanto fingia arrumar os documentos, esperou que os outros saíssem a fim de encarar aquela que cometera o mesmo erro que ele. Quando achou que todos tinham se levantado, ergueu a cabeça em busca de sua salvação. Do outro lado da mesa, com a expressão mais patética do mundo, uma mulher dirigia-lhe um olhar fulminante. Ia tentar se justificar quando ouviu a voz do presidente:
- É melhor se apressarem. A exposição a qual me referi acontecerá dentro de dez minutos.
Ambos levantaram e, tentando andar o mais naturalmente possível, saíram mancando da sala. Lá fora ele se aproximou dela e tentou ser o mais sucinto possível:
- Parece que temos algo em comum!
- O certo não seria incomum?
- É melhor trocarmos os sapatos.
- Acho uma excelente idéia!
Devidamente calçados cada um se dirigiu para o salão onde os outros já se encontravam, tomando o cuidado de ficarem tão longe quanto possível um do outro!
Roberto Policiano

23 de out. de 2006

Como se faz poesia

Com o uso de palavras
Transmitimos emoções,
Seja através de poesias
Ou através de canções.

Cabeças iluminadas
Onde a emoção abunda,
Com apenas poucas palavras
Transmitem emoções profundas.

Quatro palavras se pequenas;
Três, se forem médias;
Se passar disso, duas
Ou apenas uma só.

Porém, aqueles que são gênios
E esbanjam habilidade,
Os que se fizeram mestres;
Usam apenas metade!

Roberto Policiano

16 de out. de 2006

Carência

Era aposentado. Financeiramente levava uma vida tranqüila. É certo que tinha que usar seus recursos com uma certa parcimônia, mas estava contente com a sua porção. Era visitado pelos filhos e netos com uma freqüência razoável, embora desejasse que as visitas fossem mais amiúde. Enviuvara há sete anos. Nos dois primeiros anos fez questão de cuidar da casa ele mesmo, mas depois, cedendo às constantes insistências dos filhos, aceitou contratar a Alice para realizar os trabalhos domésticos. Enquanto tomava seu suco de laranja sua vida se desenrolou em sua mente como em uma retrospectiva. Lembrou dos bons e alegres tempos. Tossiu. Lembrou do xarope que ganhara do compadre Militão que, segundo o amigo, era tiro e queda. Voltou a pensar no tempo em que aquela casa era cheia de vida, quando os filhos ainda eram estudantes. O vazio e o silêncio de agora o incomodava. Já há algum tempo a solidão o machucava. Às vezes sentia vontade de ser abraçado. Lembrou que, em algumas vezes, chegou a abraçar a si mesmo. Veio-lhe à memória também que, enquanto se auto-abraçava, beijava o próprio ombro. Outras vezes afagava seus cabelos ou acariciava seu rosto. Mas não era a mesma coisa. Faltava o compartilhamento do afeto.
Voltou a si. Terminou de tomar o suco. Olhou em direção à Alice, que naquele momento limpava a estante da sala. Foi indicada por um conhecido de seu filho. Tinha boas referências. No principio a recebeu sem muito entusiasmo. Pretendia livrar-se dela assim que convencesse os filhos disso. Acabou gostando dela. Seu jeito o agradava. Trabalhava para ele já por cerca de cinco anos. Tinha uma filha de oito anos, E, como era só ela e a filha, precisava do emprego. Algumas vezes levava-a para passar o dia com ela. O dono da casa não se incomodava, no fundo até gostava. Achava graça quando a menina o chamava de você e a mãe a repreendia dizendo que devia chamá-lo de senhor.
- Não se preocupe, Alice, eu não me importo.
- Mas ela precisa se dirigir aos mais velhos de forma respeitosa.
- Quem liga para isso hoje?
Ambos estavam satisfeitos, ela com o salário e ele com os serviços prestados.
Continuou sentado à mesa com o copo na mão. De repente passou a reparar melhor naquela mulher. Até que ela era bonita. Com uns cuidados a mais então!... Imaginou-a com os cuidados que pensara. Quem sabe se os dois... Levantou-se e caminhou em direção a ela no intuído de convidá-la para jantar fora. No caminho um espelho, tal qual um amigo sincero, mostrou-lhe francamente que ele já era um sexagenário, ao exibir sem dó seus cabelos ralos e quase todos brancos, além das várias rugas que mapeavam seu rosto, e, portanto, muito velho para isso. O que ela podia pensar se tão somente ele se atrevesse a... Como um mero espelho pode ser tão cruelmente convincente! Alice pressentiu a proximidade incomum do patrão.
- Deseja mais alguma coisa?
- Eu... Será que você poderia passar minha camisa creme? Pretendo usá-la hoje à noite.
- Já está passada. Antes de sair deixo-a em sua cama.
- Obrigado! Vou sair um pouco agora. Preciso colocar em dia minha caminhada.
- Queria dizer mais alguma coisa?
- Não, Alice, era só isso, obrigado.
Caminhou em direção à porta da saída. Seu ouvido, já cansado, não captou um suspiro triste e profundo. Fazia um lindo dia, que ele o recepcionou com um sorriso triste. Caminhou rápido e cabisbaixo em direção à praça do local. Da porta de sua casa Alice o observou até perdê-lo de vista. Fechou a porta, secou algumas lágrimas com o avental, e voltou aos seus afazeres.

Roberto Policiano

9 de out. de 2006

Só se for com você

De que me adianta os perfumes das flores
Se eu não puder sentir o seu cheiro?

De que me adianta o brilho das estrelas
Se eu não puder fitar o seu olhar?

De que me adianta o canto dos pássaros
Se eu não puder ouvir a sua voz?

De que me adianta o esplendor do por -do -sol
Se eu não puder ter você ao meu lado?

De que me adianta a carícia da brisa
Se eu não puder sentir o toque de suas mãos?

De que me adianta a majestade das montanhas
Se eu não puder admirar o seu sorriso?

De que me adianta as ondas do mar
Se eu não puder abraçar o seu corpo?

De que me adianta uma campina verdejante
Se eu não puder afagar os seus cabelos?

De que me adianta os néctares das flores
Se eu não puder beijar os seus lábios?

De que me adianta correr de encontro ao vento
Se eu não puder sentir a sua respiração?

De que me adianta as cascatas cristalinas
Se eu não puder acariciar o seu rosto?

De que me adianta a beleza da lua
Se eu não puder ter você em meus braços?

De que me adianta o frescor duma noite de verão
Se eu não puder deitar a sua cabeça em meu peito?

De que me adianta a tranqüilidade do rio
Se eu não puder colocá-la em meu colo?

De que me adianta o estrondo do trovão
Se eu não puder ouvir o pulsar do seu coração?

Portanto, lhe asseguro, meu amor,
Não importa pra onde seja, eu só vou se você for!

Roberto Policiano

2 de out. de 2006

Aparição


O primeiro a vê-lo foi o seu Nenê, marido da dona Antônia. Deixou o regador que o mantinha ocupado naquele momento, entrou e casa, e saiu de mãos dadas com a mulher até a rua para visualizarem melhor. Logo um sorveteiro, que por acaso passava por ali, se juntou a eles. A seguir dona Matilde, que fora colocar o lixo na lixeira, ao perceber o que acontecia, aumentou o pequeno grupo de observadores. O grupo cresceu com a chegada de um grupo barulhento de alunos que voltava da escola. Dona Rosa, diferente destes primeiros, olhava de sua própria janela. Assim faziam também o seu Laércio, dona Gertrudes e o velho Antunes. O Dr. Lucas descobriu-o de sua própria escrivaninha e, deixando de lado o serviço por um tempo, contemplou-o com o rosto iluminado por um sorriso. Dona Ema deixou a granja com o intuito de dar uma olhadinha e por lá ficou. Seu Manoel, que dificilmente desencosta o umbigo do balcão de sua adega, também foi atraído pela novidade, e, para o espanto daqueles que o conheciam, apareceu na rua para testemunhar o fato. De repente chegaram pessoas de vários lugares diferentes para, junto com os outros, presenciar o espetáculo - A babá que passeava com o bebê; o idoso que, cumprindo meio à contra-gosto a recomendação médica, fazia sua caminhada diária; o gerente do banco; o dono da padaria; a florista; o engraxate; o menino que passeava com o cachorro. Em pouco tempo a praça estava coalhada de pessoas. Outras observavam de terraços, muros, portões, janelas, portas, carros, etc. O jovem Otelo, ao ver o que estava acontecendo quando foi levar a toalha para ser pendurada no varal, voltou para o quarto correndo e, pegando sua avó pelo braço, levou-a com cuidado até o elevador e, descendo os quinze andares que mantinham a velhinha afastada da rua já por mais de cinco anos, fez questão de desconsiderar as ordens estritas de sua mãe para compartilhar com a nona aquela raridade. Todos, como que hipnotizados, deixaram suas obrigações, suas dores, seus medos, seus aborrecimentos, seus serviços e suas pressas. O Bebê que estava no colo da babá, quando finalmente deu-se conta do que chamava a atenção de todos, sorriu um sorriso gostoso que terminou com um sonoro eeeeaaarriiiii e, meio desajeitado com os seus onze meses, tentou bater palminhas. O Rodrigo, menino de cinco anos que estava ao seu lado, ajudou-o por juntar suas batidas de palmas às do bebê. A nona do Otelo, que estava junto das crianças, como que voltando à infância, aplaudiu junto com elas. Outros que estavam por perto, reconhecendo que os aplausos eram merecidos, juntaram-se a eles. De repente todos, extasiados, aplaudiam aquela exuberante aparição do Arco-íris!
Roberto Policiano