Carência
Era aposentado. Financeiramente levava uma vida tranqüila. É certo que tinha que usar seus recursos com uma certa parcimônia, mas estava contente com a sua porção. Era visitado pelos filhos e netos com uma freqüência razoável, embora desejasse que as visitas fossem mais amiúde. Enviuvara há sete anos. Nos dois primeiros anos fez questão de cuidar da casa ele mesmo, mas depois, cedendo às constantes insistências dos filhos, aceitou contratar a Alice para realizar os trabalhos domésticos. Enquanto tomava seu suco de laranja sua vida se desenrolou em sua mente como em uma retrospectiva. Lembrou dos bons e alegres tempos. Tossiu. Lembrou do xarope que ganhara do compadre Militão que, segundo o amigo, era tiro e queda. Voltou a pensar no tempo em que aquela casa era cheia de vida, quando os filhos ainda eram estudantes. O vazio e o silêncio de agora o incomodava. Já há algum tempo a solidão o machucava. Às vezes sentia vontade de ser abraçado. Lembrou que, em algumas vezes, chegou a abraçar a si mesmo. Veio-lhe à memória também que, enquanto se auto-abraçava, beijava o próprio ombro. Outras vezes afagava seus cabelos ou acariciava seu rosto. Mas não era a mesma coisa. Faltava o compartilhamento do afeto.
Voltou a si. Terminou de tomar o suco. Olhou em direção à Alice, que naquele momento limpava a estante da sala. Foi indicada por um conhecido de seu filho. Tinha boas referências. No principio a recebeu sem muito entusiasmo. Pretendia livrar-se dela assim que convencesse os filhos disso. Acabou gostando dela. Seu jeito o agradava. Trabalhava para ele já por cerca de cinco anos. Tinha uma filha de oito anos, E, como era só ela e a filha, precisava do emprego. Algumas vezes levava-a para passar o dia com ela. O dono da casa não se incomodava, no fundo até gostava. Achava graça quando a menina o chamava de você e a mãe a repreendia dizendo que devia chamá-lo de senhor.
- Não se preocupe, Alice, eu não me importo.
- Mas ela precisa se dirigir aos mais velhos de forma respeitosa.
- Quem liga para isso hoje?
Ambos estavam satisfeitos, ela com o salário e ele com os serviços prestados.
Continuou sentado à mesa com o copo na mão. De repente passou a reparar melhor naquela mulher. Até que ela era bonita. Com uns cuidados a mais então!... Imaginou-a com os cuidados que pensara. Quem sabe se os dois... Levantou-se e caminhou em direção a ela no intuído de convidá-la para jantar fora. No caminho um espelho, tal qual um amigo sincero, mostrou-lhe francamente que ele já era um sexagenário, ao exibir sem dó seus cabelos ralos e quase todos brancos, além das várias rugas que mapeavam seu rosto, e, portanto, muito velho para isso. O que ela podia pensar se tão somente ele se atrevesse a... Como um mero espelho pode ser tão cruelmente convincente! Alice pressentiu a proximidade incomum do patrão.
- Deseja mais alguma coisa?
- Eu... Será que você poderia passar minha camisa creme? Pretendo usá-la hoje à noite.
- Já está passada. Antes de sair deixo-a em sua cama.
- Obrigado! Vou sair um pouco agora. Preciso colocar em dia minha caminhada.
- Queria dizer mais alguma coisa?
- Não, Alice, era só isso, obrigado.
Caminhou em direção à porta da saída. Seu ouvido, já cansado, não captou um suspiro triste e profundo. Fazia um lindo dia, que ele o recepcionou com um sorriso triste. Caminhou rápido e cabisbaixo em direção à praça do local. Da porta de sua casa Alice o observou até perdê-lo de vista. Fechou a porta, secou algumas lágrimas com o avental, e voltou aos seus afazeres.
Roberto Policiano
2 Comments:
Será que esse Militão existe mesmo? Já não é a primeira vez que ele aparece.
Sabe o que é, Cecilia, eu costumo reunir meus personagens para um chá nas noites de sexta-feira. Você precisa ver a confusão que costuma ser esses encontros.Mas é uma ocasião deliciosa! Um grande abraço e obrigado pelos seus comentários. Eles são muito apreciados.
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