Roberto Policiano

26 de mai. de 2008

Privilegiados

Doutor Fábio e a família, depois de passar um final de semana prolongado num hotel de luxo numa cidade litorânea, preparava-se para fazer a viagem de retorno. Com a família bem acomodada em seu Mercedes equipado com ar condicionado e demais comodidades que garantiria uma viagem confortável, deixaram o hotel. Não havia rodado ainda quinhentos metros e já deparou com uma fila quilométrica de carros. Pressentiu que a viagem demoraria mais do que previra. Sabia que não adiantava se aborrecer com aquilo, pois, além de não resolver em nada, poderia deixar a si e, conseqüentemente, toda a família, mal-humorados. Assim, ligou o som num volume agradável e, enquanto esperava o avanço lento dos carros, acompanhava a música tamborilando o volante do carro com os dedos. O sol exibia todo o seu esplendor naquela tarde, embora já passasse das 16 horas. Da janela de seu carro assistia as pessoas literalmente se derreterem com o calor que fazia. Sentiu-se privilegiado por poder enfrentar o congestionamento naquele carro luxuoso e confortável, numa temperatura agradável, não obstante o calor do dia. Sentiu dó das pessoas que suportavam aquele tempo quente. Chamou-lhe a atenção os vendedores ambulantes que, aproveitando a fila dos carros, traziam em seus carrinhos, puxados à mão, grandes caixas térmicas recheadas de bebidas geladas a fim de oferecê-las aos que se preparavam para viajar. Era assim que eles ganhavam a vida. ‘Que dureza’, pensou doutor Fábio enquanto assistia as vindas e idas dos vendedores que passavam rentes aos carros empurrando suas cargas pesadas debaixo daquele sol escaldante. Chamou-lhe a atenção um deles que, calculou o doutor, deveria ter no máximo trinta anos. Ele vestia uma bermuda e uma camiseta regata que estava colada no corpo de seu dono devido ao suor. Calçava um chinelo de dedo, um pouco já gasto, e levava uma grande caixa térmica sobre uma armação com duas pequenas rodas, muito usada pelos vendedores ambulantes. Resolveu comprar algumas bebidas, mais por compaixão do que por sede. Do outro lado da rua, acompanhando a outra fila de carros, uma mulher, também vestida de maneira simples, também ganhava a vida do mesmo jeito. Dr. Fábio olhou de relance para sua família, e sentiu-se grato pela sorte com que fora agraciado e esboçou um leve sorriso de contentamento. Não nos detenhamos na viagem cansativa da família. Seis horas depois eles chegaram são e salvos à luxuosa residência da família. As crianças foram atendidas pelas empregadas que atenderam-nas assim que o carro estacionou na garagem. A família, depois de um merecido banho, sentou-se à mesa para uma leve refeição. Enquanto as crianças foram levadas para seus respectivos quartos, a mulher tratou de preparar as coisas para o dia seguinte, pois entrava no serviço às oito horas da manhã, e literalmente se atirou na cama. Era o que pretendia fazer o doutor Fábio. Antes, porém, como era seu costume, foi verificar suas correspondências eletrônicas. Uma delas o comunicava que ele deveria presidir a reunião que haveria no dia seguinte em lugar de seu superior que, a pedido da empresa, estava em viagem para uma reunião de negócios com clientes de outro país. Três horas depois, após reunir todas as informações para o compromisso do dia seguinte, pode o doutor Fábio se recolher – ou quase ser recolhido – ao seu aposento.
Voltando à cidade litorânea, onde iniciou a nossa história, encontramos o Pompeu e a Letícia, casal de vendedores ambulantes observados pelo doutor Fábio. Os dois trabalharam sem parar até por volta das vinte horas, quando o número de veículos e o clima não justificavam mais a permanência dos vendedores ali. Depois de tomaram um banho de água fria, colocaram uma roupa leve e foram à casa da dona Zulmira, mãe da Letícia, onde a família se reunia todos os domingos a fim de saborear uma deliciosa refeição, feita à base de frutos do mar. Era uma receita especial, passada de geração a geração desde a época da bisavó da avó da dona Zulmira. Aliás, o Lúcio, filho mais velho da dona Zulmira e um dos cozinheiros do hotel onde se hospedara o doutor Fábio e sua família, não cansava de elogiar esse prato ao chefe da cozinha que, para colocar os ‘pratos a limpo’, fui como convidado dele experimentar o prato tão aclamado pelo seu subordinado. Não é que ele tentou convencer dona Zulmira a ‘vender’ o segredo por um bom preço ao hotel? Isso ele não conseguiu, mas recebeu outro convite para, junto com sua família, voltar na semana seguinte para repetir o cardápio, o que ele aceitou imediatamente. Pois bem, depois que o casal se deleitar com o companheirismo dos seus e da comida da dona Zulmira, foi, como fazia todos os domingos, passear pela areia da praia. A noite estava agradável. Uma brisa, que vinha da direção do mar, contribuía para uma sensação de bem estar do casal, que caminhavam de mãos dadas. O mar, a praia, a areia, a pedra onde eles sentaram para apreciar as espumas das ondas iluminadas pela luz da lua, o murmúrio suave do mar, estavam à disposição do casal, que se sentia privilegiado por poder usufruir sem pressa, aquela ocasião tão singular!
Roberto Policiano

19 de mai. de 2008

Intriga Interna

Percebo que meu intelecto
Brigou com o meu corpo.
Acho que não dá mais certo
Um viver perto do outro.

Meu corpo, zangado,
Insiste em não abrir mão
De negar que meu intelecto
Tem sempre toda a razão.

Meu intelecto, por sua vez,
Ofendido e indignado,
Só enxerga o meu corpo
De nariz empinado!

Os dois há muito não se falam.
Há tempos não se entendem!
Estando intrigados se calam.
Quando se tratam se ofendem.

Desconfio que meu intelecto
Fez sua mala e saiu de mansinho.
Acho que Ligou o piloto automático
Deixando o corpo funcionando sozinho.

É que às vezes me pego
Distante de onde estou
E percebo nesta hora
Que meu intelecto escapou.

Pois vejo e não enxergo;
Ouço e não escuto;
Cheiro e não sinto;
Provo e não saboreio;
Toco e não percebo.

Assim, se estou na cidade
Encontro-me no campo!
Se acaso ando por terra
Acho-me perdido no mar!

Então corro para o campo,
Mas não saiu da cidade!
Faço-me à vela,
Mas continuo em terra!



Mesmo quando quero assistir a um filme
De outros pensamentos não me livro.
Não mantenho o pensamento firme
Quando me esforço em ler algum livro.

Se, num esforço árduo,
Procuro manter os dois juntos,
Eles encaram como um fardo
Terem que agir em conjunto!

Já não sei mais o que faço
Para unir estes teimosos!
Já me desfiz em pedaços
Para juntar estes orgulhosos!

Roberto Policiano

12 de mai. de 2008

Atitude

Não cabia em si de tanto contentamento. Era seu primeiro dia naquele emprego. Era tudo que sonhara. Para a sua felicidade seu local de trabalho ficava a quatro quadras da estação do metrô, trajeto esse que poderia fazer a pé, contribuindo assim para a manutenção de seu condicionamento físico, coisa que fazia questão de fazer. O fato de não ter que tirar o carro da garagem e enfrentar o trânsito infernal da cidade onde morava, era outra vantagem bastante significativa. Não teria gasto nem com combustível nem com estacionamento, além de ficar com a consciência tranqüila por não contribuir com a poluição do ar nem com o aquecimento global. Além do mais, o período do novo trabalho não impediria de continuar a lecionar, a sua verdadeira paixão. Não teria nem que atravessar a rua ao sair do metrô, pois o lugar onde trabalharia ficava do mesmo lado da estação. A primeira semana foi uma maravilha. Tudo funcionou perfeitamente como planejara. Na semana seguinte deparou-se com um inconveniente – a construção de um edifício bem ao lado da estação do metrô. A movimentação de trabalhadores e máquinas se intensificou a cada dia. Dentro de duas semanas teve que dividir o espaço com máquinas, trabalhadores, água, lama, materiais que chegavam constantemente e pessoas que vinham e iam. Não deixou se intimidar com isso e procurou encarar tudo com normalidade. Havia o incômodo de ter que limpar os sapatos todas as vezes que chegava ao escritório, mas, pensava, a situação seria passageira. Num dia de chuva, quando deixou o local de trabalho e se dirigia para a estação do metro, com todo o cuidado a situação demandava, olhou acidentalmente para o outro lado da rua e não pode acreditar no que via – uma calçada limpa de desimpedida à espera de ser ocupada. Como não percebera isso antes? No dia seguinte, após sair da estação do metrô, atravessou a rua e, enquanto caminhava confortavelmente na calçada, não conseguiu parar de olhar para o outro lado da rua onde as pessoas caminhavam com dificuldades. Sentiu-se inteligente por estar do outro lado da rua. Enquanto caminhava refletiu sobre o assunto e chegou à conclusão que a rotina muitas vezes nos faz andar como autômatos. Era tão automático virar imediatamente à direita na saída da estação que, mesmo quando o caminho ficou ruim, continuou a andar por ele como se não houvesse alternativa. Quantas vezes não fazemos exatamente isso na vida? filosofou. Quantas vezes passamos desnecessariamente por situações incômodas sem ao menos aventarmos qualquer mudança. Às vezes basta ‘olhar para o lado’ e ‘mudar de calçada’. E foi filosofando assim que chegou sorridente e com os sapatos limpos ao seu local de trabalho. Entrou no escritório com a sensação de ser a criatura mais inteligente do mundo, simplesmente porque teve a ousadia de atravessar a rua e mudar de calçada.
Roberto Policiano

5 de mai. de 2008

Ressurreição

Não dá para conter o pranto
Pois a visão é macabra
No solo não há mais campo,
Nos morros nenhuma cabra.

Sente-se do solo a febre,
Da carniça o fedor,
Da caatinga, por mais que se negue,
Só sobraram tristeza e dor.

O sol ardente, escaldante,
Deixou a terra crestada.
No horizonte o retirante
Cabisbaixo pega a estrada.

Até mesmo a Asa Branca,
Como nos diz a canção,
Jamais viu, em toda sua vida,
O sertão ser tão sertão!

Mas então a abençoada chuva,
Pedida em toda a oração,
Matou a sede do solo
E trouxe a ressurreição.

Tudo se transforma como que por encanto
O sertão de alegria entra em festa.
Percebe-se isso de canto em canto.
Nota-se isso de fresta em fresta.

No galinheiro um pintinho sai de um ovo.
No curral, a mamar, uma rês nova.
No velho tronco da mangueira um renovo.
A vida em todos os cantos se renova.

No vilarejo vê-se uma bela imagem.
A esperança o povo remoça.
No campo já há pastagem.
O verde já está na roça.

A Asa Branca já voltou para o sertão.
A caatinga passou a viver de novo.
A esperança remoçou o coração
Pois o sertão se revestiu de verde novo!

Roberto Policiano