Roberto Policiano

29 de set. de 2008

Rei Arthur


Seu manto real é uma capa de chuva toda esfarrapada e encardida. Sua espada é um pedaço de cabo de vassoura. Sua coroa é um boné de pano. Seu palácio é uma tenda feita de restos de madeiras e sacos de lixos amarrados com barbante, construída à margem de um rio. Seu reino? Bem, seu reino é a rua. Seus leais aliados são aqueles que, por misericórdia, dão-lhe algo para comer ou beber que ele promete, empenhando sua palavra de rei, restituir em barras de ouro. E teu exército? Onde estão os teus soldados? ‘Numa missão especial’, sussurra ele a quem perguntar. Que missão é essa? Isso ele só conta para os seus aliados, e apenas quando tem certeza que ninguém poderá ouvi-lo: ‘foram resgatar minha rainha, mas não conta para ninguém, pois os inimigos podem descobrir’. Onde estão os teus criados? ‘Eu os dispensei. Não quero que me descubram nesse disfarce. É por isso que vivo nesse castelo de campo simples’, diz ele apontando para a cabana.
Já vive naquele lugar por cerca de um ano. Anda pelas mesmas ruas e conta a mesma história a quem tiver disposto a ouvir, principalmente se lhe dão algo para comer ou beber. Ficou tão conhecido na região que lhe apelidaram de rei Arthur. Alguns lhe ofereceram serviços, mas ele agradece e, depois de deixar claro que um rei não foi feito para trabalhar, diz que não pode deixar de manter a guarda, pois seus soldados podem chegar a qualquer momento. Às vezes passa várias horas em cima de uma árvore que fica perto de sua cabana, por suspeitar ter visto um espião de tocaia perto de seu ‘palácio de campo’. Quando tem certeza que não há inimigos por perto, permanece o dia todo no banco da praça central do lugar e conta, para aqueles que ele confia, histórias mirabolantes sobre seu reinado. Suas conquistas, seus julgamentos, a bravura de seus soldados, a beleza de sua rainha, a eficiência e lealdade de seus ministros, a dedicação de seus servos, a grandiosidade de seu palácio, a imensidão de seu país, o tamanho de seu tesouro, e o que mais lhe vier à sua mente doentia. Certa vez ele me descreveu o seu castelo com detalhes tão impressionantes que quase me convenceu que estava comentando algo real.
Seus olhos, inquietos, inspiram convicção. Seu andar e sua postura são, creiam-me, dignos de um soberano. Transmite confiança quando fala sobre sua história. Nomeia cada um dos nobres de seu reinado. Até mesmo quando come ou bebe algo que lhe é servido, não o faz com sofreguidão, mas de um modo bastante digno.
Sempre demonstrou uma disposição feliz, mas aquele dia, um domingo, estava com um semblante bastante jovial. Sorriu quando me viu e pediu que eu sentasse um pouco ao seu lado, pois tinha boas notícias de seu reino e queria compartilhá-las comigo. Como tinha tempo, pois ainda era cedo, cerca de seis horas da manhã, resolvi atender ao seu pedido.
- Queria me despedir de você.
- Para onde você vai?
- Partirei para o meu reinado.
- E a missão especial?
- Está concluída. A rainha foi resgatada em boa saúde, os inimigos foram eliminados, e meus soldados estão a caminho para me buscar. Não lhe disse? Aí estão eles!
Ao olhar para o lugar apontado por ele não queria acreditar no que meus olhos viam. Uma magnífica carruagem estava estacionada no lado oposto da praça. À frente dela seis cavalarianos, atrás outros seis deles. Uma portinhola do veículo se abriu e três distintos cavaleiros, ricamente trajados, desceram e se dirigiram diretamente para o rei Arthur. Depois de se curvarem com reverência por três vezes, disseram:
- A carruagem está pronta, majestade. Partiremos quando desejar.
Imediatamente sua alteza foi conduzida até a carruagem, não antes de se despedir da minha pessoa. Fiquei assistindo boquiaberto a partida magnífica do rei e seus súditos, quando, de repente, aconteceu algo mais espetacular ainda. Aquele grupo incomum começou a se elevar até desaparecer num galope magnífico por detrás de uma nuvem alaranjada pelo reflexo do sol da manhã.
Desde então muitos tem procurado o rei Arthur. Fizeram uma varredura no rio na tentativa de achar seu corpo. Vasculharam cada lugar do local, mas tudo em vão. Eu bem que pensei em contar o que vi, mas, pensando bem, desisti. Quem acreditaria no meu relato?


Roberto Policiano

22 de set. de 2008

Declarações de amor


Há muitas formas diferentes
De dizermos eu te amo.
Nem sempre tem que ser audível.
Nem sempre é muito evidente.
Às vezes pode ser imperceptível,
Noutras de propósito camuflamos.
Mas sempre dizemos, seja como for:
Eu te amo, meu amor!

O brilho do nosso olhar,
Se fosse computadorizado
E magneticamente analisado,
Só teria um significado.
A intensidade deste olhar,
Seu brilho, seu tom, sua cor,
Carregam um mesmo recado:
Eu te amo, meu amor!

Que dizer do nosso sorriso?
Que sinal quer transmitir?
Que mensagem quer passar?
Qual o seu recado preciso?
Não temos como mentir;
Não conseguimos enganar;
Ele nos diz sem pudor:
Eu te amo, meu amor!

As batidas dos nossos corações
Querem nos passar um recado,
Não importa se através de meios
Modernos ou ultrapassados.
Elas nos dizem, com muito ardor,
Como que através de um e-mail
Ou de um batuque de um tambor:
Eu te amo, meu amor!

Para não haver mal-entendido
Do que eu quero lhe dizer
Com os versos deste poema,
Quero insistir neste tema.
Vou deixar esclarecido
E dizer com todas as letras,
Sem nada tirar nem pôr:
Eu te amo, meu amor
Roberto Policiano

15 de set. de 2008

Os Diáfanos


Aquele dia parecia que seria um dia como qualquer outro. Mas, de repente, tudo parou. Não havia energia elétrica em lugar nenhum. Os telefones, fixos ou móveis, silenciaram-se. Os veículos diminuíram suas velocidades e pararam. Os aviões começaram a aterrissar no aeroporto mais próximo. Todas as máquinas deixaram de funcionar. O sistema foi literalmente desligado. Seres diáfanos tornaram-se visíveis em todos os lugares. Cada humano, como que hipnotizado, dirigiu-se para um desses seres e, entrando numa fila, aguardou a sua vez de ser entrevistado. Nos lugares onde as pessoas ainda dormiam, devido ao fuso horário, os diáfanos entraram em suas casas e, permanecendo de pé na sala de estar, aguardaram as pessoas que foram despertas por uma força estranha e se dirigiram até eles. A entrevista foi rápida, durou apenas alguns segundos, tempo que os diáfanos olhavam nos olhos da pessoa e, como que lendo a mente dela, informava-a sobre a tarefa que lhe fora designada. Tudo isso foi feito sem se dizer uma única palavra. Não houve contestação. Era como se cada um ficasse convencido de que ele merecia exatamente a sua designação. À medida que ficava sabendo do que fora determinado, a pessoa se dirigia para a rua e se encaminhava para seu trabalho. Algumas horas depois das aparições dos diáfanos, vários humanos caminhavam em fila a fim de cumprir sua missão. Os diáfanos estiveram presentes também nos hospitais e visitaram cada paciente. Colocaram a mão direita sobre a cabeça do doente, que foi curado instantaneamente, e fizeram a mesma entrevista, dando a cada um deles uma tarefa específica. As crianças foram separadas em faixas etárias e levadas para vários lugares longe das grandes cidades, onde cresceriam livres das influências das pessoas do sistema antigo. Tomou-se o cuidado de, em cada grupo, deixar crianças de todas as etnias.
Depois da intervenção dos diáfanos a humanidade seguiu uma nova lógica. Todos os sistemas montados pelos humanos simplesmente desapareceram. As pessoas, agora divididas em grupos, viveram a partir de então, única e exclusivamente no lugar a que foram designadas de modo a não se encontrar com ninguém das outras regiões. Em cada um dos grupos montados os diáfanos orientavam, distribuíam e coordenavam as tarefas. As pessoas não conversavam entre si, apenas cumpriam seus trabalhos.
Já no caso das crianças, foi-lhes ensinado um novo idioma, totalmente diferente de qualquer dos idiomas conhecidos pelos humanos. Com elas os diáfanos conversavam e brincavam, como se fossem seus próprios filhos. As casas onde elas passaram a ocupar, que foram construídas em lugares antes desabitados, não pareciam em nada com as casas existentes antes. O estilo de vida que lhes foram ensinados também era ímpar. Nascia uma nova sociedade.
Enquanto isso os grupos de pessoas que foram designadas a permanecerem nas cidades anteriormente montadas pelos humanos receberam a tarefa de desmanchar toda a construção da antiga sociedade, tarefa essa que levou quatrocentos anos para ser concluída. Nesse mesmo período os rios e os mares foram despoluídos e limpos, a ponto de não ser encontrado, por mais que se procurasse, nem uma tampa de plástico sequer. Maior do que esse milagre foi o fato de que, durante esses quatrocentos anos, nenhum dos trabalhadores morreu. Era como se eles tivessem que desfazer tudo antes de partirem, pois, após terminar o desmanche, e num período de cinco meses, todos eles pereceram, ficando, àqueles que sobraram um pouco mais de vigor, a tarefa de enterrá-los. Como isso já era previsto pelos diáfanos, grandes valas já estavam escavadas à espera dos corpos. Quanto às crianças que foram separadas dos pais no dia do acerto de contas, por nunca se encontrarem com estes grupos, jamais ficaram sabendo deles nem do sistema a que foram resgatados. Elas não se tornaram eternas, morriam, com qualquer ser humano, mas tiveram uma vida digna, feliz e livre, principalmente do modo de vida criado pelos seus antepassados.
Tendo terminando a tarefa a que foram designados, chegara, enfim, o tempo dos diáfanos partirem. Foi realizada uma grande festa, que durou vários dias. No dia da partida uma espaçonave pousou no cume de um dos montes e dela saiu um diáfano semelhante àqueles que ajudaram na cura do planeta e da humanidade. No campo que defrontava a montanha, milhares de diáfanos esperavam para embarcar. Parecia impossível que todos eles coubessem naquela espaçonave. Foi então que aconteceu o maior espetáculo de todos. O diáfano que estava no cume do monte abriu seus dois braços em direção aos céus e, a seguir, os que esperavam para embarcar fizeram o mesmo gesto. Após isso eles começaram a voar, quase que ao mesmo tempo, e se incorporaram naquele único que chegou por último, de modo que todos eles se tornaram um. Depois de acenar para os humanos presentes, o diáfano entrou na espaçonave e, sem ruído, tremor ou fumaça, desapareceu rumo ao infinito.
Ao planeta terra e à humanidade foi dada mais uma chance.

Roberto Policiano

8 de set. de 2008

Realismo


ele – periferia
ela – condomínio de alto padrão
ele – quatro horas da manhã
ela – oito horas da manhã
ele – pão com margarina e xícara de café
ela – croissant, geléia de cerejas e suco de laranja
ele – samba
ela – jazz
ele – futebol
ela – golfe
ele – assalariado
ela – empresária
ele – vinte e sete anos
ela – vinte e quatro anos
ele – ensino médio
ela – administração de empresas
ele – roupa da moda jovem
ela – roupa de grife
ele – ônibus
ela – conversível
ele – mac donald
ela – restaurante francês
ele – solteiro
ela – solteira
ele – shopping de alto padrão
ela – shopping de alto padrão
ele – a serviço
ela – compras
ele – entrada principal a pé
ela – estacionamento VIP
ele – corredor à esquerda
ela – corredor à direita
ele – praça Central
ela – praça Central
ele – olhando para trás distraído
ela – olhando para trás distraída
ele – trombando com ela
ela – trombando com ele
ele – desculpa-me estava distraído
ela – tudo bem também estava desatenta
ele – adeus
ela – adeus
ele – seguiu o caminho dele
ela – seguiu o caminho dela

achou que seria como?


Roberto Policiano

1 de set. de 2008

Senhor Narciso



Ao chegar ficou de pé perto da entrada da sala de espera. Permaneceu junto à parede do seu jeito costumeiro – apoiava as palmas das mãos da parede e encostava-se nas costas das mesmas. Havia lugar disponível para sentar-se, mas sua timidez o impediu de ocupá-lo. Vinte minutos depois chegou o primeiro atendente. Na ocasião a sala já estava repleta de gente. Mais dez minutos se passou e um outro funcionário chegou com algumas pastas de documentos e colocou-as na mesa onde se encontrava o atendente. O último falou baixinho no ouvido do primeiro:

- Quem é o velho desdentado ali?
O primeiro respondeu com um sorriso.
Nenhum deles notou, mas duas lágrimas escapuliram dos olhos cansados do Narciso, enquanto um sorriso triste moveu levemente seus lábios. Enquanto continuava de pé, tentou responder a ele mesmo a pergunta que ouvira. Quem era ele afinal? Seus pensamentos o levaram de volta num casebre onde nascera. Viu a si mesmo aos cinco anos de idade correndo atrás do Pirruíra, um bode de estimação. Gostava de montar no lombo do animal a fim de passear de carona, como ele mesmo dizia. Parece que o animal não aprovava muito a idéia, pois sempre que o Narcisinho se aproximava ele procurava escapar da brincadeira. O Culpado disso foi o tio Moreira que, quando o menino tinha seus três anos de idade, colocou no lombo do bode. De um salto seu pensamento levou-o quatro anos à frente quando, aos nove anos de idade, perdera o pai, vítima de uma picada de serpente.
Narcisinho quis chorar, mas ao ver sua mãe, mulher miúda e tísica, engoliu o choro e prometeu a ela que a ajudaria em cuidar dos nove filhos. Assim ele falou, assim ele fez. Deixou a escola, que ele gostava tanto, e, segurando desajeitadamente a enxada, foi cuidar da plantação da família. Os visinhos deram os seus socorros, mas foi ele, Narcisinho, que assumiu o trabalho de sustentar a família.
Dois anos depois, quando já se familiarizara com a lida do campo e sabia arrancar o sustento do solo, bem como cuidar da criação da família, sua mãe, não suportando mais a luta para viver, morreu num leito de hospital. Narcisinho não desistiu, mas cumpriu sua função de provedor até que todos seus irmãos assumiram o controle de suas próprias vidas.
Ele, agora senhor narciso, continuou na propriedade depois que todos se foram para construir suas próprias famílias. Sorte da dona Tereza, pois certa noite, tendo sua filha, Maria das Graças, precisado de socorro e, visto que o marido viajava na ocasião, recebeu a ajuda do Narciso, que era seu visinho, para carregar a menina, já com doze anos, até a estrada, distante dezoito quilômetros do local. Ele ficou esperando com a mãe e a filha na beira da estrada, por cerca de quarenta minutos, até que passou por lá o Monteirinho, com sua caminhonete e, a pedido do Narciso, levou a criança e a mãe até o pronto socorro.
Desde então Narciso ajudou muitos outros, como, por exemplo, o Milton, o Alencar, a Lurdinha, o Nestor, a Conceição, a Totonha da venda, a Anastácia do sítio de baixo e tantos, tantos outros, que é impossível enumerar.
Narciso continuou ali na roça. Seu irmão caçula, o Lucas, era o que mais o visitava, embora os outros fossem ao sítio com certa regularidade e todos, sem exceção, nas férias do fim de ano. Pois bem, muitos anos depois, Lucas, vendo que o irmão perdera todos os dentes, resolveu presenteá-lo com um sorriso novo. Afinal, disse ele em convencimento ao irmão que relutou, no princípio, com a idéia, “você foi meu segundo pai”.
Agora, pensou Narciso voltando à realidade, vem um sujeitinho qualquer, que nem conhece a minha história, e me chama de velho desdentado?
Indignado, caminhou com decisão até uma cadeira desocupada, sentou-se, cruzou as pernas e os braços e esperou sua vez.

Roberto Policiano