Carraspana
Assim que entrou no consultório do psicólogo se jogou no divã e falou:
- Meu mundo ruiu!
- O que aconteceu que o faz pensar assim?
- Eu sei que provoquei isso, mas o castigo foi além do meu erro.
- Quer falar sobre isso?
- Eu devia ter feito o serviço assim que o gerente mandou, mas sabe quando você está terminando um trabalho e não quer interrompê-lo? Foi o que aconteceu. Eu sabia que em menos de cinco minutos concluiria o que estava fazendo, assim, peguei o documento e coloquei-o em cima do computador a fim de cumprir a ordem do gerente logo em seguida, mas acabei me esquecendo dele. Estava tão abarrotado de serviço que iniciei outro imediatamente. Depois veio o segundo, o terceiro, o quarto... No final do expediente, quanto fui cobrado da tarefa pelo chefe, lembrei da ordem dada. É verdade que eu tratei de providenciar o serviço logo em seguida, ficando além do meu horário de trabalho para reparar meu erro, mas não teve jeito. No dia seguinte, ao chegar à minha mesa, vi o bilhete do gerente me intimando a comparecer ao seu gabinete. Dez minutos depois, quando saí com a cara deste tamanho, o Cleonor, um colega de trabalho, depois de dar umas batidinhas em meu ombro, disse-me, junto com um sorriso sarcástico: “Que carraspana que você levou hein?”. Aquilo acabou comigo! Depois dessa nunca mais serei o mesmo.
- Por que você acha que será assim?
- Você não escutou o que eu disse? Eu levei uma carraspana! Uma CARRASPANA! Uma CARRASPANA, ouviu? CAR-RAS-PA-NA, entendeu agora?
- Você deve ter ficado muito chateado com isso!
- Chateado? O mundo acabou para mim! Quem mais, no mundo, leva uma carraspana? Eu fui o último da espécie a ser carraspanado. Quando eu me olho no espelho parece que vejo em minha testa um carimbo desse tamanho com os seguintes dizeres: “O último carraspanado do mundo”. Não, eu não merecia isso. Não se deve sair por aí dando carraspana nas pessoas. Isso é muito ultrajante, principalmente nos tempos modernos. Tudo bem que o gerente teve razão em ficar chateado comigo, mas ele exagerou na dose. Ele poderia usar de um expediente menos traumático. Que ele fosse camarada e me desse apenas uma admoestação. Garanto que saberia responder à altura. Uma censura também estaria de bom tamanho. Poderia me recriminar e aplicar-me uma reprimenda. Se ele estivesse num dia ruim poderia ser mais rude e ralhar comigo ou me dar uma bronca, um pito ou um sermão. Poderia até suportar, embora chateado um reproche dele. Na pior das hipóteses, engoliria, humilhado, e com um bico deste tamanho, uma exprobração. Mas, ao me dar uma carraspana ele ultrapassou todos os limites! Ele simplesmente enterrou o meu futuro. Estou acabado, eliminado, é o fim.
- Fala-me por que você acha que isso é assim.
- Porque esta é a coisa mais óbvia do mundo! Acompanhe meu raciocínio - Estou numa entrevista para um emprego; preencho todos os requisitos para o cargo; tenho experiência suficiente para conduzir bem os trabalhos; respondo todas as perguntas do entrevistador a contento; mostro equilíbrio emocional adequado para o cargo; tudo parece caminhar bem até que ele fica sabendo, talvez através da minha íris, ou pelo leve levantar de minhas sobrancelhas, ou um minúsculo repuxar dos músculos de minha testa, ou sei lá o que mais, que eu fui o último a levar uma carraspana e pronto, lá se foi a minha oportunidade de emprego. Ou então que eu tenha a sorte de encontrar o grande amor da minha vida e tudo caminha bem, indicando um final feliz, até que uma amiga dela levando-a num canto e diz em seus ouvidos que ela sabe - de fonte extremamente segura - que sou o tal que levou a última carraspana e pronto, tudo acabado. Portanto, não há nenhum exagero quando digo que estou arruinado.
- Bem, se seu gerente foi tão cruel com você, quem garante que ele não repita este ato vil com outro? Deste modo você deixará de ser o último a levar uma carraspana.
- Não, doutor, ele não terá coragem para tanta maldade. Eu pressenti em seus olhos como ele relutou em aplicar em mim este golpe baixo. Eu tenho absoluta certeza que ele não terá coragem de repetir esta grande maldade com outra pessoa. Percebi também, um leve sorriso sarcástico que, traduzido, quis dizer: “serei o último a aplicar uma carraspana em alguém. Nunca mais alguém será capaz de repetir uma crueldade desta”. Sim, pode acreditar, ele se sentiu o último carrascanador do planeta. Nunca vi ninguém ter tanto ódio no coração como ele. Onde já se viu resgatar uma prática tão odienta do baú e usá-la, sem dó, em uma pessoa como eu?
A Terapia inteira girou em torno do mesmo assunto.
- Bem, disse o que eu tinha que dizer. Preciso ir agora. Na semana que vem eu volto. Até lá.
- Qualquer coisa é só ligar. Você sabe que sempre pode contar comigo.
Depois que o psicólogo levou o cliente até a porta e despediu-se dele, voltou para o consultório e, deixando-se cair no divã, pensou desolado:
- Que azar o meu! Devo ser o último psicólogo do mundo que tratará de alguém desolado por levar uma carraspana. Isso levará não menos do que duzentas sessões!
- Meu mundo ruiu!
- O que aconteceu que o faz pensar assim?
- Eu sei que provoquei isso, mas o castigo foi além do meu erro.
- Quer falar sobre isso?
- Eu devia ter feito o serviço assim que o gerente mandou, mas sabe quando você está terminando um trabalho e não quer interrompê-lo? Foi o que aconteceu. Eu sabia que em menos de cinco minutos concluiria o que estava fazendo, assim, peguei o documento e coloquei-o em cima do computador a fim de cumprir a ordem do gerente logo em seguida, mas acabei me esquecendo dele. Estava tão abarrotado de serviço que iniciei outro imediatamente. Depois veio o segundo, o terceiro, o quarto... No final do expediente, quanto fui cobrado da tarefa pelo chefe, lembrei da ordem dada. É verdade que eu tratei de providenciar o serviço logo em seguida, ficando além do meu horário de trabalho para reparar meu erro, mas não teve jeito. No dia seguinte, ao chegar à minha mesa, vi o bilhete do gerente me intimando a comparecer ao seu gabinete. Dez minutos depois, quando saí com a cara deste tamanho, o Cleonor, um colega de trabalho, depois de dar umas batidinhas em meu ombro, disse-me, junto com um sorriso sarcástico: “Que carraspana que você levou hein?”. Aquilo acabou comigo! Depois dessa nunca mais serei o mesmo.
- Por que você acha que será assim?
- Você não escutou o que eu disse? Eu levei uma carraspana! Uma CARRASPANA! Uma CARRASPANA, ouviu? CAR-RAS-PA-NA, entendeu agora?
- Você deve ter ficado muito chateado com isso!
- Chateado? O mundo acabou para mim! Quem mais, no mundo, leva uma carraspana? Eu fui o último da espécie a ser carraspanado. Quando eu me olho no espelho parece que vejo em minha testa um carimbo desse tamanho com os seguintes dizeres: “O último carraspanado do mundo”. Não, eu não merecia isso. Não se deve sair por aí dando carraspana nas pessoas. Isso é muito ultrajante, principalmente nos tempos modernos. Tudo bem que o gerente teve razão em ficar chateado comigo, mas ele exagerou na dose. Ele poderia usar de um expediente menos traumático. Que ele fosse camarada e me desse apenas uma admoestação. Garanto que saberia responder à altura. Uma censura também estaria de bom tamanho. Poderia me recriminar e aplicar-me uma reprimenda. Se ele estivesse num dia ruim poderia ser mais rude e ralhar comigo ou me dar uma bronca, um pito ou um sermão. Poderia até suportar, embora chateado um reproche dele. Na pior das hipóteses, engoliria, humilhado, e com um bico deste tamanho, uma exprobração. Mas, ao me dar uma carraspana ele ultrapassou todos os limites! Ele simplesmente enterrou o meu futuro. Estou acabado, eliminado, é o fim.
- Fala-me por que você acha que isso é assim.
- Porque esta é a coisa mais óbvia do mundo! Acompanhe meu raciocínio - Estou numa entrevista para um emprego; preencho todos os requisitos para o cargo; tenho experiência suficiente para conduzir bem os trabalhos; respondo todas as perguntas do entrevistador a contento; mostro equilíbrio emocional adequado para o cargo; tudo parece caminhar bem até que ele fica sabendo, talvez através da minha íris, ou pelo leve levantar de minhas sobrancelhas, ou um minúsculo repuxar dos músculos de minha testa, ou sei lá o que mais, que eu fui o último a levar uma carraspana e pronto, lá se foi a minha oportunidade de emprego. Ou então que eu tenha a sorte de encontrar o grande amor da minha vida e tudo caminha bem, indicando um final feliz, até que uma amiga dela levando-a num canto e diz em seus ouvidos que ela sabe - de fonte extremamente segura - que sou o tal que levou a última carraspana e pronto, tudo acabado. Portanto, não há nenhum exagero quando digo que estou arruinado.
- Bem, se seu gerente foi tão cruel com você, quem garante que ele não repita este ato vil com outro? Deste modo você deixará de ser o último a levar uma carraspana.
- Não, doutor, ele não terá coragem para tanta maldade. Eu pressenti em seus olhos como ele relutou em aplicar em mim este golpe baixo. Eu tenho absoluta certeza que ele não terá coragem de repetir esta grande maldade com outra pessoa. Percebi também, um leve sorriso sarcástico que, traduzido, quis dizer: “serei o último a aplicar uma carraspana em alguém. Nunca mais alguém será capaz de repetir uma crueldade desta”. Sim, pode acreditar, ele se sentiu o último carrascanador do planeta. Nunca vi ninguém ter tanto ódio no coração como ele. Onde já se viu resgatar uma prática tão odienta do baú e usá-la, sem dó, em uma pessoa como eu?
A Terapia inteira girou em torno do mesmo assunto.
- Bem, disse o que eu tinha que dizer. Preciso ir agora. Na semana que vem eu volto. Até lá.
- Qualquer coisa é só ligar. Você sabe que sempre pode contar comigo.
Depois que o psicólogo levou o cliente até a porta e despediu-se dele, voltou para o consultório e, deixando-se cair no divã, pensou desolado:
- Que azar o meu! Devo ser o último psicólogo do mundo que tratará de alguém desolado por levar uma carraspana. Isso levará não menos do que duzentas sessões!
Roberto Policiano
6 Comments:
Sentido de humor e crítica acutilante são ingredientes, em dose qb, deste texto.
Estamos na era dos psicanalistas e dos psiquiatras, do Prozac, da Fluoxetina. Paraísos artificiais com que tentamos esconder a nossa fragilidade,a nossa leveza,o nosso desamparo, as nossas limitações.
É cada vez mais frequente ouvir os pais dos meus alunos dizerem - não sei o que é que o meu filho tem, coitadinho (tanbém estamos na era dos coitadinhos), ele até anda a ser seguido por um psicólogo! Triste sina a destes jovens que, bem cedo, aprendem que é difícil aceitarem-nos e amarem-nos como somos, isto, claro, se não seguirmos a norma, o padrão estabelecido. Querem-nos prefeitos, aptos para a excelência, eternamente jovens, dinâmicos,sobreviventes, ainda que à custa - ou talvez por isso - da indiferença a que votamos os outros.
Por outro lado, há que ter lucidez suficiente para constatar que o mal de alguns é o bem de outros. Duzentas sessões? O psicanalista do texto é, no mínimo, um oportunista com classe. Aliás, é o que está a dar...
Quanto ao "paciente", talvez lhe tenha faltado, na infância, uma boa dose de carraspanas oportunas, certeiras e correctoras. Dessas que não abatem o "ego" mas elevam a mão. Claro, sempre em dose moderada.
Um abraço.
Não sei se nos querem ( a todos) Prefeitos, mas PERFEITOS, sim.
Peço desculpa pelo erro; ainda é consequência das eleições para as autarquias. :)
Gostei do comentário, Ana. Vejo que conheces o jargão da psicanálise. E, por falar em psicanálise, Prefeito, no lugar de perfeito, é um autêntico "Ato falho" cuja fonte, as eleições, tão bem detectaste. Leva jeito para o assunto! Que achas? Um grande abraço
Sabe, Roberto, há momentos na vida em que só queremos ajuda, compreensão e conseguir entender o que nos está a acontecer ou aconteceu.
Não tenho qualquer problema em afirmar que já recorri à psicanálise e já experimentei as "delícias" do Prozac. Não sei se aí acontece o mesmo, mas em Portugal o psicólogo não medica, apenas o psiquiatra pode fazê-lo.
Honestamente, no estado em que me encontrava, não tenho reluntância em dizer que o químico me ajudou; falar com alguém foi, de certa forma, a maneira de poder encarar-me, de poder enfrentar os meus medos, as minhas inseguranças.
Mas um comprimido não faz milagres se nós não acreditarmos neles e a certa altura dei comigo a dizer: já não preciso de muletas. Se cair, volto a levantar-me.
Por outro lado, tornou-se moda recorrer ao psiquiatra e ao psicólogo, nos dias de hoje. As pessoas não suportam a mínima contrariedade, o mínimo obstáculo e vêem nos químicos - os tais paraísos artificiais - a panaceia para todos os males e afins.
Como em tudo, amigo Roberto, há que encontrar "a justa medida".
Quanto ao PREFEITO, foi pura distracção ou, quiçá, o meu inconsciente a associar este blogue a uma prefeitura. :) Às vezes - muitas vezes - dou erros, claro. Neste caso, foi um fenómeno oculto. O progama de Português contempla a paronímia e o exemplo habitual que dou aos meus alunos é o das palavras perfeito e prefeito. Quem dera que todos os prefeitos - aqui damos-lhe o nome de presidente da câmara - fossem perfeitos! Já o contrário não tem qualquer relevância, digo eu... :)
Um abraço.
RELUTÂNCIA! :)
Realmente, Ana, não há porque ter problema em buscar ajuda profissional seja em que área for! O nosso século, inclusive o passado, desencadeou um alteração brusca na vida das pessoas que ainda não conseguimos assimilar, por isso a maior procura aos serviços da saúde mental. É o preço que temos que pagar, queira ou não queira, pela 'modernidade'
um grande abraço!
Postar um comentário
<< Home