Roberto Policiano

30 de ago. de 2010

Café da manhã



Com suas mãos ágeis limpa cuidadosamente cada cantinho da mesa. Num movimento rápido e preciso atira a toalha para o alto ao mesmo tempo em que segura por uma de suas bordas e, enquanto esta cai suavemente em direção à mesa, manobra-a habilmente de modo que o móvel fica perfeitamente coberto. Perfeito para mim, mas não para a dona Matilde, que faz questão que a toalha fique milimetricamente simétrica, assim, dá micronésimas puxadinhas aqui e ali até que seu sorriso indica que, agora sim, está perfeito.
Porcelanas, cristais, talheres e outras vasilhas impecavelmente reluzentes vão ocupando seus lugares precisos com as manobras da eficiente senhora.
Açúcar, café solúvel, leite em pó, manteiga, chás embalados em mimosos saquinhos de seda, pães diversos, biscoitos variados e uma espécie de farofa feita com várias frutas e grãos moídos completarão a primeira refeição, equilibrada e nutritiva, da família.
Assim que dona Matilde se retira começa o falatório em cima da mesa:
- Que privilégio o meu, disse o pão com um indisfarçável orgulho, sou o mais antigo dos alimentos. Estou a milhares de anos nas mesas de reis e de plebeus, alimentando homens, mulheres, crianças, poderosos e anciãos.
O chá, sossegado, escutava de seu lugar.
O café, já esquentando de raiva, disse:
- Cala esta tua boca, seu bolorento! Tu és o mais fraco dos alimentos. Não fossem as outras iguarias te enriquecer as pessoas morreriam secas. Queres é levar a fama com o que os outros fazem. Tu és farinha pura! Eu não gosto de falar de mim, pois a modéstia me impede, mas eu sim tenho história que remonta à grandiosa Arábia, nos tempos de poderosos Xeiques, os verdadeiros soberanos das mais antigas terras habitadas por humanos. Minhas qualidades foram levadas para vários países onde reinei absoluto entre as mais deliciosas bebidas! Portanto, seu esturricado, fique quietinho em seu canto e mantenhas a boca fechada que tu ganhas mais.
E o pão, intimidado, murchou em seu canto.
Enquanto isso, o chá continuava zen em seu lugar.
- Deixe de ser amargo, retrucou a manteiga, deixando sua conhecida maciez de lado, esqueceste de tua vida rústica? Tu és castigado impiedosamente pelo sol e vives coberto de poeira imunda. Por quantos banhos passastes a fim de poder estar aqui conosco? Foi necessário seres passado pelo fogo para que fosses purificado e, visto que isto não foi o bastante, arrancaram-te as peles para te livrar de tua imundície. Além do mais, fostes triturado e torrado a fim de estares entre nós. Quanto a mim, tenho angariado elogios e exclamações de admiração tanto de damas como de cavalheiros por causa do meu requintado sabor. Além do mais, tenho contribuído com minha proteína para fortalecer a humanidade, mas nem por isso vivo dando uma de gostosa!
E o café, embora fervesse de raiva, manteve-se calado em seu canto.
Quanto ao chá, ouvia tranqüilo.
- Alto lá sua sebenta, disse o leite espumando de raiva, estais a vangloriar com aquilo que não é teu.
- Que estais a dizer? Não te enxergas? Tu não passas de um medíocre pó amarelado. Que insinuação é esta que me fazes?
- Ora, pois, então não sabes?
- Onde queres chegar com este teu azedume?
- Não te avisaram que tu és ilegítima? Se não te falaram, eu falo. Tu és um subproduto de minha família. Minha tia-avó teve que ser sacrificada para que tu viesses à existência. A proteína de que tanto vangloriastes não é tua, mas pertence à minha família. Portanto, ponha-te em teu lugar e deixes de ser sebosa! Eu sim posso falar do meu sabor e da minha qualidade, pois sou o verdadeiro alimento, aliás, o primeiríssimo alimento do homem.
A manteiga, ofendida, derreteu-se de chorar.
Já o chá, sereno, permanecia tranquilo.
- Olha só quem fala, disse o açúcar ao leite, tu és tão fraco que, se não fores processado em tempo ou colocado num lugar refrigerado, azedas a ponto de exalar um cheiro insuportável. Pior ainda, deixado só tu apodreces rapidamente. A quantos que, ao te procurarem em busca de alimento para se manterem em vida, não os levaste à morte, não antes de torturá-los impiedosamente por causa das bactérias que trazes contigo? Queres falar de passado? Olhes o meu e te cala! Meu peso já valeu ouro, quando eu, tal qual a diamantes, era vendido em forma de lindos cristais. Levei nações, e até mesmo continentes, a se guerrearem a fim de se apossarem de minha doçura. Eu, por não ser egoísta, empresto meu sabor a muitos alimentos que, modéstia à parte, sem mim nem existiriam. Portanto, nada de arroto azedo para cima de mim!
O leite, sentindo-se acuado, talhou-se em seu canto.
Enquanto isso o chá, mantendo-se calmo, observava tudo.
- Melhor que todos somos nós, gritaram os biscoitos em uníssono. Somos os mais versáteis de todos. Podemos ser doces ou salgados, crocantes ou macios, puros, recheados, ou com coberturas. Somos a alegria das crianças e dos adultos em qualquer parte do mundo. Freqüentamos todas as festas. Não somos, como os demais, restritos a nenhum horário ou ocasião. Somos bem vindos, e até mesmo procurados, em qualquer hora e lugar. Além do mais, emprestamos a todos o nosso mérito. Onde quer que esteja cada um de vós, estarão melhores se estivermos juntos. Em uma mesa qualquer, nos somos os primeiros a serem notados e apreciados.
A mesa virou um reboliço com este último comentário. O leite, o café, o pão, a manteiga, até mesmo a farofa, que, por ser novata, até então não se pronunciara, levantaram suas vozes em protesto. Todos falavam e gesticulavam nervosamente e ao mesmo tempo, até que o badalo persistente do sinete de prata que estava na mesa fez com que todos se calassem. Então o chá, colocando calmamente o sino em seu lugar, disse, suave, tranqüilo e pausadamente:
- Meus amigos, por que esta discussão infrutífera? Lutas, guerras, discórdias, como todos sabem, nunca resolveu nada. Não há nesta mesa ninguém maior ou menor, porque, no fundo, somos todos iguais.
- Como assim? Retrucou cada um deles sem conseguir esconder o descontentamento por ter sido igualado aos demais.- No fundo, no fundo, continuou o chá mais zen do que nunca, cada um de nós não passa de mero pó!


Roberto Policiano

23 de ago. de 2010

Descontrole



Foi só apareceres
Para acontecer o que eu temia.
Ao notar tua presença
Meu corpo inteiro tremia.
Tua imagem;
Teu cheiro;
Tua voz;
Causam-me disritmia!


Roberto Policiano

16 de ago. de 2010

Ecologicamente correto



Ao fazer sua caminhada matinal deparou-se com um sapo e imaginou que o anfíbio estava em apuros. Pegou-o com cuidado e colocou-o por entre as grades num lugar arborizado. O sapo coaxou, o que foi interpretado como agradecimento. Logo em seguida, porém, foi abocanhado por uma cobra. O anfíbio olhou-o e coaxou novamente, só que agora pareceu mais um xingo dirigido ao seu pretenso salvador que o jogou na boca da víbora. Esta, por sua vez, num movimento preciso, engoliu a refeição sem dó.
O rapaz saiu cabisbaixo e aborrecido por ter sido o responsável de levar o pobre sapo à morte, até que uma borboleta pousou em seu ombro. Que lindas cores havia em suas asas! Logo o caminhante interpretou que a borboleta foi até ele para agradecê-lo por tê-la livrada do seu algoz e feroz inimigo. Segundos depois a borboleta alçou vôo e, numa manobra graciosa, pousou numa planta com lindas flores. Contente de ter sido o responsável por salvar aquela bela espécie, ficou um tempo a apreciar sua beleza. Logo após a borboleta depositou alguns ovos numa parte tenra na planta. Então o observador começou a examinar a planta com mais cuidado e, para sua surpresa, dois galhos abaixo havia um emaranhado de lagartas se deliciando sofregamente das folhas da planta. Ele teve a impressão de que a planta tremeu e, logo depois, uma de suas flores caiu murcha no chão.
O caminhante continuou o seu passeio enquanto refletia sobre o assunto. Como pode uma criatura tão bela produzir tanto estrago? Começou a ficar em dúvida se fora uma boa idéia eliminar o sapo. Menos de vinte passos depois deparou com uma aranha que corria no gramado para se esconder. Seu primeiro ímpeto foi esmagá-la, mas se conteve ao lembrar dos incidentes anteriores. Desviou seu pé que já estava para eliminar o inseto e seguiu andando satisfeito por não ter cometido aquele assassinato.
Tendo a atenção desviada pela natureza que pululava à sua frente, continuou sua caminhada examinando cuidadosamente os galhos das árvores da praça a fim de descobrir a vida acontecendo. Foi quando viu, numa das forquilhas de uma das árvores, uma imensa teia de aranha com uma libélula que se debatia tentando, em vão, se libertar. Logo uma aranha, parecidíssima com a que ele deixou de eliminar, aplicou seu ferrão na vítima que, assim que teve o veneno injetado em si, ficou paralisada. Com uma habilidade e rapidez incrível a dona da teia envolveu o inseto intruso com finíssimo fio de seda e levou-o, agora feito em refeição, para o centro da teia, onde, observou o rapaz, já havia vários alimentos enrolados para serem apreciados mais tarde pela família dos aracnídeos.
- Ali deve ser a dispensa dela, pensou o admirador da natureza.
Ao reiniciar sua caminhada, decidiu:
- Quer saber de uma coisa? Que os sapos escapem com suas próprias pernas! Quanto menos eu mexer na natureza, melhor faço a ela. Nem sempre uma boa intenção é suficiente para se fazer o bem.E, concluindo que a natureza era suficientemente competente para cuidar de si, tratou de, daquele momento em diante, admirá-la sim, mas de longe.


Roberto Policiano

9 de ago. de 2010

Inquietação



E, se, de repente,
Tivermos alvos diferentes?
Se nos descobrirmos
buscando por diferentes sonhos
que nos arrancarão
de nossos momentos ardentes
e nos lançarão numa jornada
onde os dias serão
tristes e medonhos?
Roberto Policiano

2 de ago. de 2010

Maciez



Mal acabou o expediente e ele saiu numa indisfarçável pressa para casa. Passou na floricultura a fim de retirar o buquê de flores que encomendara na hora do almoço. Assobiava contente uma linda canção de amor. Sorria amigavelmente a qualquer um que cruzasse seu caminho. Achava que o céu, o dia, a cidade, as pessoas, estavam MA - RA –VI – LHO - SOS! Quando chegou à rua onde morava seu coração disparou. Com o controle remoto abriu o portão da garagem ainda de longe para ganhar tempo. Antes de sair do carro deu um jeito no paletó, penteou os cabelos, conferiu o hálito, borrifou um líquido com sabor de hortelã na língua, nos dentes, no céu da boca, na garganta, para se garantir e entrou em casa rapidamente. Encontrou-a esperando por ele já com os braços abertos e um sorriso que tomava quase seu rosto todo. O abraço foi demorado e apertado a ponto de os dois de desequilibrarem e caírem num lugar macio e aconchegante. Os dois se miraram por alguns segundos. Um longo beijo levou cada um deles às alturas!
Estão casados há apenas dois meses, assim, sejamos discretos e deixemos os dois. Vamos embora!


Roberto Policiano