Roberto Policiano

2 de dez. de 2010

Cisma



Era uma tarde banhada pelo sol. Ele estava em um ônibus, numa viagem de volta para casa. Não era um trajeto que fazia parte de sua rotina diária, portanto os outros passageiros eram-lhe totalmente estranhas. Viajava em pé no corredor do veículo. Um pouco atrás dele um grupo de estudantes conversava animadamente. Embora seu corpo estivesse ali, seus pensamentos viajavam em outros mundos. Foi resgatado à realidade pelo pedido de uma das estudantes:
- Tio, dê o sinal para nós, por favor.
Aquele “tio” lhe tiniu nos ouvidos. Foi a primeira vez que um, ou melhor, uma, estranha, dirigiu-se a ele com este “pronome de tratamento”. A educação fê-lo atender à solicitação. Por viver em sociedade, praticou o gesto com um leve e forçado sinal de sorriso ao elevar, em alguns milionésimos de centímetros, o lado direito de seus lábios, comportamento este que nem foi notado pela moça, autora do pedido.
O “tio” permaneceu martelando em sua cabeça, inicialmente de modo estrondoso, mas, depois, como é de praxe, foi perdendo sua intensidade até parar de incomodá-lo.
Muitos outros “tios” aconteceram desde então. No começo ouve estranhamento e desamparo, mas acabou por se adaptar e aceitar o novo “pronome”.
Alguns anos depois, enquanto viajava num dos trens metropolitano de sua cidade e aguardava em pé a chegada da estação de desembarque, uma passageira, que ocupava um dos bancos destinados aos idosos, mulheres grávidas e pessoas com necessidades especiais, ofereceu-lhe o lugar, já ameaçando um movimento de levantar-se. Mais do que depressa ele acenou negativamente com as duas mãos, a cabeça, e, provavelmente, com todo o corpo, indo, quase que imediatamente, transtornado, vacilante e ofendido, para outra parte do vagão, carregando consigo uma cara deste tamanho e um peso enorme que pairava sobre si. Passou o dia inteiro pensando na experiência traumática e, ao chegar a casa, correu para diante do espelho onde fez um exame minucioso de sua aparência. Pareceu-lhe que rugas começaram a brotar em todas as direções, amarrotando impiedosamente seu rosto. Percebeu um matagal de três fios de pelos brancos clareando suas sobrancelhas. Desesperou-se ao ver aquele horror e tratou de arrancá-los apressadamente. Olhou para suas mãos e percebeu-as como folhas secas engelhadas pelo sol. Teve a impressão de que suas veias iam romper a pele a qualquer momento. Teve insônia por dois meses! Felizmente a rotina nublou gradativamente aquela terrível e dolorosa passagem.
Ultimamente anda meio cismado em razão de uma sensação que emana de suas entranhas. Enquanto os abalos vieram do exterior, embora fossem dolorosos, foi-lhe possível suportar. Mas aqueles sentimentos íntimos, vindos do seu próprio ser, o tem preocupado, e, ao mesmo tempo, lembrando-lhe, sem dó, da passagem do tempo. Ele está a lutar desesperadamente para negar a si mesmo a irresistível vontade, mas percebe que um imenso desejo de usar chapéu se intensifica a cada dia!


Roberto Policiano

2 Comments:

At 6:36 PM, Anonymous Ana said...

Eis um texto que é tecido a emoções.
Eu não colocaria o chapéu. :)

Abraço.

 
At 2:08 PM, Anonymous Roberto Policiano said...

Bom conselho, Ana, eu também não colocaria! Abraço

 

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