As Pick Ups do Flavinho
Quando
o Flavinho ainda era deste tamaínho assim ó, ganhou a sua primeira pick up de
seu pai que, por ser marceneiro, fabricou o brinquedo de madeira. Nunca vi
olhos mais brilhantes de um garoto como aqueles! O menino passava o dia
transportando coisas em seu utilitário, enquanto sua boca, imitando o ronco do
motor do possante, dava o tom da brincadeira mais ou menos assim:
tchuuuuuuuuuu. Isto em situação normal, pois quando a caminhonete estava com
sobrecarga ou subia uma enorme ladeira, o som passava a ser este: tchuu; tchuu;
tchuu; tchuu. Era tanta empolgação ao imitar o barulho do motor que o carro,
como que se tivesse passado no lava rápido, precisava ser enxugado de tempos em
tempos.
Tudo
ia bem até que aquela criança, enquanto passeava com sua mãe na cidade, viu uma
pick up de plástico numa das vitrinas da cidade. Empolgado com a “miragem” e,
num impulso instintivo, puxou insistentemente o braço de dona Clenilda enquanto
gritava, ou melhor, berrava e apontava o lugar da exposição:
-
Olha! Olha! Ooooooolha mãe, que coisa maravilhosa!
A
genitora, conhecendo o filho que tinha, percebeu logo o motivo de tanta
euforia, e, para brincar com ele, fingiu não entender e, apontando para um
soldadinho pulando de um paraquedas, perguntou:
-
Você gostou do Falcon?
-
Claro que não, mãe, então a senhora não sabe?
-
Não sei do quê?
-
Que meu negócio é Pick Up?
-
Ah!, respondeu dona Clenilda, você gostou daquele carrinho?
-
Que carrinho que nada, mãe, é uma Pick up F100 com tração nas quatro rodas!
Nada
poderia ser mais convincente e, por isso, Flavinho foi agraciado com aquele
espetáculo de carro.
Assim
que chegou a casa o garoto, que, como que num passe de mágica se transformou em
piloto daquele possante, deu início aos seus transportes, fazendo do tapete da
sala seu ambiente de trabalho. E haja tchuuuuuuuuuu e saliva!
Certa noite, ao chegar do trabalho, José Arturo, pai do
mais novo motorista do local, foi brincar com o filho, que naquele momento
estava ocupado em encher as duas caminhonetes com um monte de bugigangas que
seriam transportadas até a parte detrás do sofá.
- E aí filhão, precisa de uma ajuda?
- Tenho que transportar estas mercadorias até a fábrica
da Ford. Se o senhor quiser pode me ajudar a colocar a carga na carroceria.
- Posso carregar a pick up preta?
- Pode sim, mas toma cuidado.
- Cuidado com o quê?
- Para não riscar a lataria, oras! Preste atenção também
para distribuir bem a carga, senão ela pode tombar na viagem.
Seguindo estritamente as orientações do filho, os dois
conseguiram cumprir o prazo da entrega. Enquanto trabalhava junto com José
Arturo o menino, olhando fixamente nos olhos do pai, disse:
- Um dia ainda vou ter a minha Pick Up!
- Mas você já tem duas!
- Eu estou falando de uma Pick Up de verdade, pai.
- Claro que vai, meu filho, claro que vai.
Depois da missão cumprida, pai e filho, juntou-se com o
restante da família para saborear uma deliciosa refeição preparada por dona
Clenilda.
Muitos anos depois, num certo sábado depois do almoço,
estava o casal Arturo e Clenilda fazendo a sesta nas poltronas da sala quando
foi despertado por um som de buzina insistente. Ainda sonolentos marido e
mulher foram até a rua a fim de descobrir de onde vinha aquele barulho infernal
e quem era o desajustado que fazia tanta algazarra. Encontraram uma Pick Up
preta estacionada em frente ao portão da garagem. O proprietário da casa saiu
decidido a dizer umas poucas e boas para aquele folgado do motorista, mas assim
que chegou perto do veículo a porta do motorista se abriu e de lá saiu o
Flavinho com um sorriso que enfeitava todo o seu rosto e, colocando uma mão no
ombro do pai e apontando com a outra o veículo recém-adquirido, disse:
- Não falei que um dia eu teria uma Pick Up de verdade?
A emoção do momento fez com que os olhos de todos os
presentes marejassem, mas vamos deixar esta ocasião apenas com a família.
Uma semana depois estava o dono da caminhonete dando um
“capricho” no veículo, trabalho este que já havia consumido quatro horas do
proprietário e, pelo andar da carruagem, levaria ainda um período igual ou
superior, quando foi surpreendido por uma visita inesperada.
- Flavinho, meu querido, há quanto tempo que eu não te
vejo!
O interpolado, depois de olhar cuidadosamente aquela que
dirigiu a palavra, pensou: “Este tempo a que ela se refere deve ter levado
minha vida toda, pois eu nunca vi esta senhora antes”. A mulher, talvez lendo
seus pensamentos, se apresentou:
- Sou a prima da cunhada da sobrinha da irmã da nora da
sua tia.
- Ah bom, agora está explicado! Como a senhora tem
passado?
Como ela estava mais para se justificar do que responder
sobre seu bem estar, respondeu:
- Faz um bom tempo que eu planejo visitá-los, mas, como
você sabe muito bem, a vida da gente é muito corrida, e, se não fizer um
esforço muito grande, os parentes e amigos ficam esquecidos, mas eu não deixo
isso acontecer não, Flavinho, deixo nada! Por isso estou aqui hoje.
- Obrigado por se lembrar da gente!
- E eu esqueço nada, meu filho, não esqueço mesmo. Tanto
é que estou aqui. E este carro, é seu?
- É sim, comprei há uma semana.
- Que coincidência! É como eu sempre digo - as coisas
nunca acontecem por acaso.
- Como assim?
- Você sabe que eu tenho umas telhas encostada lá em casa
já por vários meses para levar para a casa da minha filha e não tinha como
transportá-la? Justamente quando eu decidi visitar vocês, deparei com este
caminhãozinho.
- Caminhãozinho? Respondeu Flavinho visivelmente
ofendido.
- Você não me faria o favor, a gentileza, a bondade, de
me levar as telhas?
- Mas eu estou passando um produto no carro e não posso
parar agora, caso contrário, a lataria do carro vai ficar toda manchada.
Deu mais trabalho dispensar a solicitante do que o
cuidado com o carro, mas vou poupá-los disso.
Desde então choveu na vida do Flavinho pessoas que jamais
se esquecera da família dele, mas que nunca havia mostrado as caras por lá, e
sempre com um humilde pedido para um “quebra-galho” de um transportezinho de
alguma tranqueira de um extremo a outro da cidade, quando não se passava da
divisa do município. Além do mais, em seu local de trabalho, sempre aparecia
alguém com os mesmos pedidos de ajuda, o que resultou em muitos resmungos e
perdas de muitas amizades, e, como se isso não bastasse, passou a ser chamado
de folgado por aqueles que tiveram seus pedidos negados. E o pobre rapaz perdeu
o sossego e, aos poucos, a paciência.
E, como toda história tem a sua “gota d’água”, esta
também tem a sua. Estava o Flavinho com a sua Pick Up em um lava rápido - pois
há muito ele desistiu de lavá-lo em sua casa visto nestas ocasiões sempre
aparecia um pedinte – quando chegou até ele alguém com um pedido inusitado:
- Moço, eu preciso urgentemente de sua ajuda.
- quem é você?
- Sou o proprietário do circo que está montado neste
bairro.
- E o que você quer de mim?
- Eu tenho um elefante que está muito doente. Se ele não
for socorrido imediatamente poderá morrer. O paquiderme é de uma espécie rara e
já temos uma companheira para ele, a fim de que sua raça não seja extinta do
planeta. Descobri que a cinco quilômetros daqui há um veterinário que já
trabalhou com elefantes na África e que poderá salvá-lo. Assim eu lhe peço
encarecidamente, pela natureza, pelo planeta, pelas pessoas, que, por favor,
leve o meu animal até o veterinário.
- Mas como eu vou fazer isso?
- Leve-o em sua Pick Up!
- Ficou louco? Como eu vou colocá-lo na carroceria?
- Você não precisa fazer força nenhuma. É só levar a
caminhonete até o circo. Lá outros elefantes erguerão o meu doente e o
colocarão delicadamente na carroceria. Os animais são treinados e eles não
causarão um arranhão sequer no veículo. Pode ficar tranquilo que qualquer
prejuízo será sanado. Se você quiser posso até comprar a Pick Up agora, mas,
por favor, nos ajude.
Condoído pela situação do raro animal e, com a garantia
de que os prejuízos seriam cobertos, Flavinho foi ajudar o homem. No circo,
conforme predito, o elefante fora colocado com todo o cuidado pelos seus
companheiros. A Pick Up rangeu e balançou, mas aguentou firme, afinal era uma
F100 com tração nas quatro rodas! A fim de não atrapalhar a condução da carga
até o seu destino, o “bichinho” fora colocado com a tromba virada para trás do
veículo para não impedir a visibilidade. Logo o motorista percebeu que uma
febre alta dominava o paquiderme, visto que um calor imenso invadiu o veículo,
não obstante o ar condicionado estivesse acionado na potência máxima.
Felizmente – se é que esta palavra cabe aqui – a turma do circo acompanhava o
carro e dois palhaços, um de cada lado, que pedalavam com agilidade seus
monociclos, estavam munidos de mangueiras e direcionaram os jatos de água sobre
o animal doente. Mas a enxurrada começou a descer vertiginosamente por todos os
lados da cabine e, azar dos azares, infiltrou no interior do carro. Com os pés
escorregando nos pedais e com aquela sobrecarga, ficou muito difícil dirigir,
mas levar aquele sofredor ao veterinário passou a ser uma questão de honra!
Cinco minutos depois havia tanta água na cabine que o nível alcançou o peito do
motorista e, alguns momentos depois, o queixo.
E a febre do doente não sumia! Quando o infeliz do condutor percebeu que
ia se afogar resolveu desistir da viagem e, para salvar a sua própria vida,
tentou abrir as portas da Pick Up para sair. Foi então que ele descobriu que as
patas do elefante prendiam as duas portas, tornando impossível fugir. Quando
tudo parecia que levaria a um fim desastroso, Flavinho acordou suando com o
cobertor enrolado em sua cabeça. Felizmente fora apenas um pesadelo!
Na manhã seguinte, domingo, enquanto estava ainda na
janela de seu quarto, assistia a vida acontecer em seu bairro. De repente um
movimento o fez tremer de medo. Uma parada circense apontou no início de sua
rua para anunciar a montagem de um circo na região. Lembrou-se do pesadelo que
tivera e, temendo que ele se tornasse realidade, trocou de roupas às pressas,
desceu as escadas correndo, e, enquanto tomava um café apressadamente, avisou
que ficaria fora por algumas horas. Tirou a Pick Up da garagem e sumiu no
mundo! À noitinha retornou com um fusquinha meia sete.
- E a Pick Up? perguntou seu pai.
- Fiz negócio com este carro.
- Você ficou louco?
- Felizmente não, mas cheguei perto!
Não querendo esticar o assunto, Flavinho alegou cansaço e
que precisava tomar um banho. Do canto do olho pôde perceber seu pai olhar para
sua mãe e rodar o indicador em volta da sua orelha.
No domingo seguinte, enquanto lavava seu fusquinha em
frente a sua casa, viu novamente a parada circense surgir na ponta da rua.
Desligou a mangueira da água e resolveu assistir ao espetáculo. Quando os
animais passaram em seus carros viu um elefante que se parecia muito com o que
vira em seu pesadelo. Deu um suspiro de alívio ao se lembrar de que trocara de
carro. Mas qual não foi a sua surpresa quando viu, no fim do comboio, a sua
Pick Up com sete anões fazendo mil piruetas em cima dela! Sua expressão de
espanto fora tão evidente que os anões perceberam. Ao passar bem perto de onde
ele estava o mais abusado deles apontou para o Flavinho e gritou:
- Perdeu alguma coisa aqui em cima, D'Artagnan?
Ele
não respondeu, mesmo porque os artistas não escutariam mesmo.
Segunda-feira
de manhã, ao chegar ao seu local de trabalho, encontrou com um dos três
mosqueteiros, que, com um sorriso de satisfação enfeitando seu rosto, comentou
feliz da vida:
-
Finalmente eu consegui.
-
Conseguiu o quê, perguntou Flavinho.
-
Comprei a Pick Up dos meus sonhos.
Flavinho
até pensou em alertá-lo, mas achou melhor não acabar com o entusiasmo do amigo
e, batendo levemente em um de seus ombros, felicitou-o pela conquista.
Roberto Policiano