Roberto Policiano

25 de set. de 2013

As Pick Ups do Flavinho

 
 
 





Quando o Flavinho ainda era deste tamaínho assim ó, ganhou a sua primeira pick up de seu pai que, por ser marceneiro, fabricou o brinquedo de madeira. Nunca vi olhos mais brilhantes de um garoto como aqueles! O menino passava o dia transportando coisas em seu utilitário, enquanto sua boca, imitando o ronco do motor do possante, dava o tom da brincadeira mais ou menos assim: tchuuuuuuuuuu. Isto em situação normal, pois quando a caminhonete estava com sobrecarga ou subia uma enorme ladeira, o som passava a ser este: tchuu; tchuu; tchuu; tchuu. Era tanta empolgação ao imitar o barulho do motor que o carro, como que se tivesse passado no lava rápido, precisava ser enxugado de tempos em tempos.

Tudo ia bem até que aquela criança, enquanto passeava com sua mãe na cidade, viu uma pick up de plástico numa das vitrinas da cidade. Empolgado com a “miragem” e, num impulso instintivo, puxou insistentemente o braço de dona Clenilda enquanto gritava, ou melhor, berrava e apontava o lugar da exposição:

- Olha! Olha! Ooooooolha mãe, que coisa maravilhosa!

A genitora, conhecendo o filho que tinha, percebeu logo o motivo de tanta euforia, e, para brincar com ele, fingiu não entender e, apontando para um soldadinho pulando de um paraquedas, perguntou:

- Você gostou do Falcon?

- Claro que não, mãe, então a senhora não sabe?

- Não sei do quê?

- Que meu negócio é Pick Up?

- Ah!, respondeu dona Clenilda, você gostou daquele carrinho?

- Que carrinho que nada, mãe, é uma Pick up F100 com tração nas quatro rodas!

Nada poderia ser mais convincente e, por isso, Flavinho foi agraciado com aquele espetáculo de carro.

Assim que chegou a casa o garoto, que, como que num passe de mágica se transformou em piloto daquele possante, deu início aos seus transportes, fazendo do tapete da sala seu ambiente de trabalho. E haja tchuuuuuuuuuu e saliva!

            Certa noite, ao chegar do trabalho, José Arturo, pai do mais novo motorista do local, foi brincar com o filho, que naquele momento estava ocupado em encher as duas caminhonetes com um monte de bugigangas que seriam transportadas até a parte detrás do sofá.

            - E aí filhão, precisa de uma ajuda?

            - Tenho que transportar estas mercadorias até a fábrica da Ford. Se o senhor quiser pode me ajudar a colocar a carga na carroceria.

            - Posso carregar a pick up preta?

            - Pode sim, mas toma cuidado.

            - Cuidado com o quê?

            - Para não riscar a lataria, oras! Preste atenção também para distribuir bem a carga, senão ela pode tombar na viagem.

            Seguindo estritamente as orientações do filho, os dois conseguiram cumprir o prazo da entrega. Enquanto trabalhava junto com José Arturo o menino, olhando fixamente nos olhos do pai, disse:

            - Um dia ainda vou ter a minha Pick Up!

            - Mas você já tem duas!

            - Eu estou falando de uma Pick Up de verdade, pai.

            - Claro que vai, meu filho, claro que vai.

            Depois da missão cumprida, pai e filho, juntou-se com o restante da família para saborear uma deliciosa refeição preparada por dona Clenilda.

            Muitos anos depois, num certo sábado depois do almoço, estava o casal Arturo e Clenilda fazendo a sesta nas poltronas da sala quando foi despertado por um som de buzina insistente. Ainda sonolentos marido e mulher foram até a rua a fim de descobrir de onde vinha aquele barulho infernal e quem era o desajustado que fazia tanta algazarra. Encontraram uma Pick Up preta estacionada em frente ao portão da garagem. O proprietário da casa saiu decidido a dizer umas poucas e boas para aquele folgado do motorista, mas assim que chegou perto do veículo a porta do motorista se abriu e de lá saiu o Flavinho com um sorriso que enfeitava todo o seu rosto e, colocando uma mão no ombro do pai e apontando com a outra o veículo recém-adquirido, disse:

            - Não falei que um dia eu teria uma Pick Up de verdade?

            A emoção do momento fez com que os olhos de todos os presentes marejassem, mas vamos deixar esta ocasião apenas com a família.

            Uma semana depois estava o dono da caminhonete dando um “capricho” no veículo, trabalho este que já havia consumido quatro horas do proprietário e, pelo andar da carruagem, levaria ainda um período igual ou superior, quando foi surpreendido por uma visita inesperada.

            - Flavinho, meu querido, há quanto tempo que eu não te vejo!

            O interpolado, depois de olhar cuidadosamente aquela que dirigiu a palavra, pensou: “Este tempo a que ela se refere deve ter levado minha vida toda, pois eu nunca vi esta senhora antes”. A mulher, talvez lendo seus pensamentos, se apresentou:

            - Sou a prima da cunhada da sobrinha da irmã da nora da sua tia.

            - Ah bom, agora está explicado! Como a senhora tem passado?

            Como ela estava mais para se justificar do que responder sobre seu bem estar, respondeu:

            - Faz um bom tempo que eu planejo visitá-los, mas, como você sabe muito bem, a vida da gente é muito corrida, e, se não fizer um esforço muito grande, os parentes e amigos ficam esquecidos, mas eu não deixo isso acontecer não, Flavinho, deixo nada! Por isso estou aqui hoje.

            - Obrigado por se lembrar da gente!

            - E eu esqueço nada, meu filho, não esqueço mesmo. Tanto é que estou aqui. E este carro, é seu?

            - É sim, comprei há uma semana.

            - Que coincidência! É como eu sempre digo - as coisas nunca acontecem por acaso.

            - Como assim?

            - Você sabe que eu tenho umas telhas encostada lá em casa já por vários meses para levar para a casa da minha filha e não tinha como transportá-la? Justamente quando eu decidi visitar vocês, deparei com este caminhãozinho.

            - Caminhãozinho? Respondeu Flavinho visivelmente ofendido.

            - Você não me faria o favor, a gentileza, a bondade, de me levar as telhas?

            - Mas eu estou passando um produto no carro e não posso parar agora, caso contrário, a lataria do carro vai ficar toda manchada.

            Deu mais trabalho dispensar a solicitante do que o cuidado com o carro, mas vou poupá-los disso.

            Desde então choveu na vida do Flavinho pessoas que jamais se esquecera da família dele, mas que nunca havia mostrado as caras por lá, e sempre com um humilde pedido para um “quebra-galho” de um transportezinho de alguma tranqueira de um extremo a outro da cidade, quando não se passava da divisa do município. Além do mais, em seu local de trabalho, sempre aparecia alguém com os mesmos pedidos de ajuda, o que resultou em muitos resmungos e perdas de muitas amizades, e, como se isso não bastasse, passou a ser chamado de folgado por aqueles que tiveram seus pedidos negados. E o pobre rapaz perdeu o sossego e, aos poucos, a paciência.

            E, como toda história tem a sua “gota d’água”, esta também tem a sua. Estava o Flavinho com a sua Pick Up em um lava rápido - pois há muito ele desistiu de lavá-lo em sua casa visto nestas ocasiões sempre aparecia um pedinte – quando chegou até ele alguém com um pedido inusitado:

            - Moço, eu preciso urgentemente de sua ajuda.

            - quem é você?

            - Sou o proprietário do circo que está montado neste bairro.

            - E o que você quer de mim?

            - Eu tenho um elefante que está muito doente. Se ele não for socorrido imediatamente poderá morrer. O paquiderme é de uma espécie rara e já temos uma companheira para ele, a fim de que sua raça não seja extinta do planeta. Descobri que a cinco quilômetros daqui há um veterinário que já trabalhou com elefantes na África e que poderá salvá-lo. Assim eu lhe peço encarecidamente, pela natureza, pelo planeta, pelas pessoas, que, por favor, leve o meu animal até o veterinário.

            - Mas como eu vou fazer isso?

            - Leve-o em sua Pick Up!

            - Ficou louco? Como eu vou colocá-lo na carroceria?

            - Você não precisa fazer força nenhuma. É só levar a caminhonete até o circo. Lá outros elefantes erguerão o meu doente e o colocarão delicadamente na carroceria. Os animais são treinados e eles não causarão um arranhão sequer no veículo. Pode ficar tranquilo que qualquer prejuízo será sanado. Se você quiser posso até comprar a Pick Up agora, mas, por favor, nos ajude.

            Condoído pela situação do raro animal e, com a garantia de que os prejuízos seriam cobertos, Flavinho foi ajudar o homem. No circo, conforme predito, o elefante fora colocado com todo o cuidado pelos seus companheiros. A Pick Up rangeu e balançou, mas aguentou firme, afinal era uma F100 com tração nas quatro rodas! A fim de não atrapalhar a condução da carga até o seu destino, o “bichinho” fora colocado com a tromba virada para trás do veículo para não impedir a visibilidade. Logo o motorista percebeu que uma febre alta dominava o paquiderme, visto que um calor imenso invadiu o veículo, não obstante o ar condicionado estivesse acionado na potência máxima. Felizmente – se é que esta palavra cabe aqui – a turma do circo acompanhava o carro e dois palhaços, um de cada lado, que pedalavam com agilidade seus monociclos, estavam munidos de mangueiras e direcionaram os jatos de água sobre o animal doente. Mas a enxurrada começou a descer vertiginosamente por todos os lados da cabine e, azar dos azares, infiltrou no interior do carro. Com os pés escorregando nos pedais e com aquela sobrecarga, ficou muito difícil dirigir, mas levar aquele sofredor ao veterinário passou a ser uma questão de honra! Cinco minutos depois havia tanta água na cabine que o nível alcançou o peito do motorista e, alguns momentos depois, o queixo.  E a febre do doente não sumia! Quando o infeliz do condutor percebeu que ia se afogar resolveu desistir da viagem e, para salvar a sua própria vida, tentou abrir as portas da Pick Up para sair. Foi então que ele descobriu que as patas do elefante prendiam as duas portas, tornando impossível fugir. Quando tudo parecia que levaria a um fim desastroso, Flavinho acordou suando com o cobertor enrolado em sua cabeça. Felizmente fora apenas um pesadelo!

            Na manhã seguinte, domingo, enquanto estava ainda na janela de seu quarto, assistia a vida acontecer em seu bairro. De repente um movimento o fez tremer de medo. Uma parada circense apontou no início de sua rua para anunciar a montagem de um circo na região. Lembrou-se do pesadelo que tivera e, temendo que ele se tornasse realidade, trocou de roupas às pressas, desceu as escadas correndo, e, enquanto tomava um café apressadamente, avisou que ficaria fora por algumas horas. Tirou a Pick Up da garagem e sumiu no mundo! À noitinha retornou com um fusquinha meia sete.

            - E a Pick Up? perguntou seu pai.

            - Fiz negócio com este carro.

            - Você ficou louco?

            - Felizmente não, mas cheguei perto!

            Não querendo esticar o assunto, Flavinho alegou cansaço e que precisava tomar um banho. Do canto do olho pôde perceber seu pai olhar para sua mãe e rodar o indicador em volta da sua orelha.

            No domingo seguinte, enquanto lavava seu fusquinha em frente a sua casa, viu novamente a parada circense surgir na ponta da rua. Desligou a mangueira da água e resolveu assistir ao espetáculo. Quando os animais passaram em seus carros viu um elefante que se parecia muito com o que vira em seu pesadelo. Deu um suspiro de alívio ao se lembrar de que trocara de carro. Mas qual não foi a sua surpresa quando viu, no fim do comboio, a sua Pick Up com sete anões fazendo mil piruetas em cima dela! Sua expressão de espanto fora tão evidente que os anões perceberam. Ao passar bem perto de onde ele estava o mais abusado deles apontou para o Flavinho e gritou:

            - Perdeu alguma coisa aqui em cima, D'Artagnan?

Ele não respondeu, mesmo porque os artistas não escutariam mesmo.

Segunda-feira de manhã, ao chegar ao seu local de trabalho, encontrou com um dos três mosqueteiros, que, com um sorriso de satisfação enfeitando seu rosto, comentou feliz da vida:

- Finalmente eu consegui.

- Conseguiu o quê, perguntou Flavinho.

- Comprei a Pick Up dos meus sonhos.

Flavinho até pensou em alertá-lo, mas achou melhor não acabar com o entusiasmo do amigo e, batendo levemente em um de seus ombros, felicitou-o pela conquista.


Roberto Policiano