Roberto Policiano

30 de out. de 2013

Para que viver mais?




Cleunaides entrou no consultório do clínico geral e sentou-se na cadeira do paciente. Chegara à turma dos sexagenários, razão pela qual estava ali, pois era avesso a médico. Do outro lado da mesa o doutor. Barba que não era feita há três dias, acima do peso, camisa listrada com os dois botões de cima desabotoados, avental branco totalmente aberto, os dois braços repousados em cima da mesa com as mãos de lado,mais inclinadas para o teto do que para a mesa. Os dois homens se miraram por alguns segundos. O silêncio foi quebrado pelo profissional.

- E então, senhor Cleunaides, o que o traz aqui?

- A idade, doutor.

- Pela sua ficha o senhor acabou de fazer sessenta anos, é isso mesmo?

- Sim senhor!

- E o que o preocupa?

- A mim nada, mas depois de muita insistência da Genasina aqui estou eu?

- Genasina é a sua mulher?

- Isso mesmo.

- Entendo muito bem! Vamos lá, tire a camisa e deite-se na maca, por favor.

Depois dos exames de praxe cada um dos homens voltou a se sentar.

- Já fez exame de próstata? perguntou o doutor.

- Nunca fiz!

- Qual foi a última vez que você foi ao médico.

- Nunca precisei.

- Você toma bebida alcoólica?

- Provei um pouco há muito tempo, mas não gostei. Nunca mais tomei.

- Você fuma, masca ou cheira tabaco?

- Dei uma pitada num cigarro de palha, mas me engasguei e tossi tanto que meus olhos se encheram de água. Desde então fico longe desta praga.

- Usa algum tipo de droga?

- Jamais fiz esta besteira!

- Costuma ficar muitas noites acordado?

- Claro que não, doutor, a noite foi feita para dormir. Ademais, como levanto cedo para ir ao trabalho, tenho que dormir logo. Estou tão acostumado com isso que pouco depois que escurece minha cabeça começa a cambalear de sono, e eu, como não gosto de teimar com a natureza, vou logo pra cama.

- Você não frequenta festas?

- Só as festas dos parentes, mas não fico muito tempo não.

- E quando você se reúne com os amigos, não fica até tarde da noite?

- Eu gosto de prosear com os amigos nas tardes de domingo, quando não vou visitar algum parente, mas assim que escurece eu volto para casa, afinal, segunda de manhãzinha tenho que levantar para trabalhar.

- Você ainda trabalha?

- Não muito como antes, é verdade, mais ainda trabalho.

- Você não é aposentado?

- Claro que sou doutor, e já faz um bom tempo. Mas, sabe como é, o que a gente recebe da aposentadoria é pouco, não dá para depender só desse dinheiro. Além do mais, ficar em casa sem fazer nada é ruim, pois, mesmo que eu quisesse, a minha Genasina não me deixa botar a mão no serviço dela. Então... Só me resta trabalhar, doutor, pois, se a noite foi feita para dormir, o dia foi feito para trabalhar.

- Posso fazer uma pergunta bem pessoal, Cleunaides?

- Claro que pode, doutor, claro que pode.

- Qual o seu interesse em viver mais?

O paciente não esperava e, portanto, não estava preparado para responder aquela pergunta, de modo que, por alguns segundos um desconfortável silêncio tomou conta do consultório. O sexagenário pendeu um pouco a cabeça para a direita, apoiou o queixo numa das mãos, e direcionou os olhos para a mesa. O médico, concluindo que sua pergunta não fora feliz, ameaçou reatar a conversa, mas Cleunaides fez um sinal com a mão que estava livre indicando que queria responder. Em seguida disse:

- Perto da minha casa, na rua detrás de onde eu moro, tem uma pedra. De vez em quando eu vou com a Genasina lá e nós dois ficamos sentado ali esperando o sol se pôr. É a coisa mais linda que eu já presenciei. Ver o céu ficar amarelo, depois alaranjado e então vermelho até escurecer é algo indescritível. Assistir a estes espetáculos ao lado da minha Genasina não tem preço que pague...

Eu tenho um amigo que a gente trata ele de Toninho, uma vez por mês a gente se reúne no boteco do Dico para ouvi-lo tocar violão. Os que sabem cantar acompanha a música com suas vozes. Eu não toco nem canto, mas não perco aqueles momentos por nada...

Umas três vezes por ano minha família gosta de ir à praia. São viagens curtas, de apenas um fim de semana. Gostamos de ir fora de temporada porque é mais sossegado. Ver o mar se movimentando para lá e para cá faz mexer a alma da gente...

Eu tenho um primo que mora numa chácara não muito longe de casa. É uma viagem de duas horas de ônibus de onde eu moro até lá. Às vezes vários membros de nossa família se reúnem naquele lugar, onde passamos o fim de semana. Ouvir os pássaros cantar, descobrir flores silvestres, encontrar animaizinhos entre os ramos e colocar a conversa em dia com os parentes é muito bom...

A genasina, doutor, é uma cozinheira de mão cheia. Só de me lembrar da comida que ela prepara dá água na boca, mas a macarronada que ela faz supera todas as outras. O senhor precisa provar a macarronada dela qualquer dia, é uma delícia...

Bem, doutor, acho que é por causa destas coisas que eu quero viver mais, eu acho.

- Nunca ninguém foi tão convincente como você, Cleunaides, disse o médico tentando esconder a emoção, vou pedir alguns exames para o senhor fazer.

Roberto Policiano

23 de out. de 2013

Não falta mais nada!





Mais um episódio de problemas na linha de transporte férreo de passageiros e, como sempre acontece em tais ocasiões, cada composição está abarrotada com passageiros de cinco viagens. Naquele dia, no entanto, a situação estava realmente crítica, pois, se em condições normais o trem acomoda quatro pessoas por metro quadrado, havia, sem nenhum exagero, vinte e sete passageiros amontoados na mesma área. Não se respirava ar, mas gás carbônico provenientes de centenas de visitas a pulmões, de modo que já vinha aquecido por tais trajetórias. Em cada estação a espera era de cerca de dez minutos a fim de desentalarem os passageiros que pretendiam descer, além das tentativas de embarque daqueles que esperavam na plataforma superlotada. Pelo menos acontecia a troca de oxigênio na composição, o que permitia que a carga viva continuasse como tal. Com tudo isso o período do percurso era multiplicado por sete. Um dos passageiros, com o corpo retorcido em trezentos e quarenta e cinco graus e sustentado com apenas a ponta do pé direito - pois o outro não encontrou piso para se apoiar – e com o rosto enterrado na axila esquerda do companheiro de suplício, pensou: “pior que isso impossível!”. No entanto, assim que terminou sua reflexão um odor desagradável, proveniente do Rio Pinheiros, invadiu suas narinas, resultando num mal estar quase que de imediato.

- Quem mandou duvidar?, desabafou consigo mesmo.
 
Roberto Policiano

16 de out. de 2013

Três vovôs - III - vovô Rogério



 

Na casa do avô Rogério

Não se pode fazer tudo

Tem que ter algum critério,

Mas nada de muito absurdo.

 

Pode abrir a geladeira,

Pegar o que der vontade;

Com respeito à brincadeira

Tem-se alguma liberdade.

 

Mas tudo tem seu limite

Para evitar confusão.

O que ele jamais admite

É a falta de educação.

 

Há conversas agradáveis

Sobre assuntos do universo;

Dos segredos insondáveis

Guardados em muitos versos.

 

É templo que alimenta a alma;

Recanto que inspira a calma.

À casa do avô Rogério

Vai quem busca refrigério.


Roberto Policiano

9 de out. de 2013

Seu Pedrinho



Já aos cinco anos ele mostrou-se prestativo. Quando viu dona Cida chegando da feira com duas sacolas abarrotadas, se prontificou em ajudar. Não houve quem o convencesse de que ele não tinha força suficiente para carregar a sacola. Literalmente cercou a vizinha, constrangendo-a ao insistir em auxiliá-la. Ainda bem que o seu Dito, que se dirigia a casa para almoçar e se interar do assunto, achou uma solução. E lá foi o pequeno Pedro caminhando abraçando uma penca de bananas que fez questão de depositar em cima da mesa da cozinha da dona das compras. Como recompensa de sua boa ação, saiu de lá com uma mexerica na mão e um sorriso deste tamanho.

Desde então o menino viveu para servir, houvesse ou não recompensa, pois a maior satisfação, dizia ele quando já era um homem feito, era se sentir útil. Não havia nada que seu Pedrinho, como era carinhosamente tratado por todos, não soubesse fazer, ou melhor, havia uma, apenas uma, que o deixava chateado quando tocava no assunto. Não conseguia ler uma letra sequer, embora não faltasse esforço de sua parte e de muitos que o tentaram ajudá-lo. Alguém precisava consertar um vazamento no encanamento? Remover um entulho? Fazer alguma compra? Levar algum recado? Carpir um terreno? Companhia para adoentado? Viajar para pegar alguma encomenda? Levantar de madrugada para assegurar um lugar numa fila qualquer? Construir um muro? Refazer uma cerca? Tratar de animais de estimação nas férias – curtas ou longas? Ajuda para carregar ou descarregar mudança? Estava lá o seu Pedrinho, muitas vezes sem ser solicitado, pois na pequena cidade onde ele morava todos se conheciam e não havia necessidade alheia que o homem não ficasse a par e, consequentemente, corresse para acudir, como se dizia então. E a satisfação de ajudar, embora lá se fossem setenta anos desde sua primeira prontidão, não diminuiu um pouquinho assim, ó!

Embora quase um octogenário, seu Pedrinho nunca fora empregado, porém sempre teve trabalho. Jamais se casou e nem pensou neste assunto. Ninguém jamais o viu reclamar da sorte, tampouco das recompensas que recebia pelas ajudas que prestava, embora muitas delas fossem bastante modestas, tendo em vista a família que era socorrida então. Parece que era nestas ocasiões em que o homem se sentia mais gratificado ainda.

Quando Agenor precisou buscar uma encomenda no armazém do Arlindo, correu até o casebre do Pedrinho a fim de solicitar seus serviços. Cansou de bater palmas, mas ninguém o atendeu. Naquele momento dona Alberta passava na rua e, ao assistir a cena, desconfiou e, desviando sua rota, entrou na casa do homem e, confirmando seu instinto, o encontrou acamado. A febre ardia por todo o corpo do doente. Imediatamente o dono do único carro do lugarejo foi avisado e, deixando o que estava fazendo e socorreu o moribundo. Ajudado por Agenor e dona Alberta, levaram-no imediatamente ao posto de saúde, distante sessenta quilômetros do lugar. Por sorte havia um médico de plantão. O homem foi examinado, medicado, e, por cerca de três horas, permaneceu em observação. Voltou para casa com um pacote de medicamentos e um encaminhamento para exames a fim de averiguar com mais profundidade o motivo do adoecimento.

Dona Alberta se transformou em enfermeira e fez questão de dar os remédios ao doente de acordo com a prescrição, não adiantando nem atrasando um minuto sequer, mesmo tendo que se levantar de madrugada para se dirigir à casa de seu Pedrinho só para ofertar o medicamento. Além do mais, se ocupou da arrumação da casa, preparação dos alimentos e lavagem das roupas. Foi então que seu Pedrinho descobriu que possuía uma família, mesmo morando só.

O próprio Agenor cuidou de ir ao hospital a fim de marcar os exames solicitados pelo médico, mas havia uma fila extensa de pacientes que esperavam sua vez, de modo que seu Pedrinho e seus vizinhos tiveram que ser pacientes em aguardar a realização do exame. A espera levou meses, e quando foi finalmente liberado, o dia agendado seria dali a trinta dias. O moribundo conseguiu esperar apenas vinte e oito dias e, não resistindo à moléstia, foi vencido pela doença não obstante os esforços de dona Alberta. Aquele homem prestativo, que viveu para servir, não foi atendido num exame simples e barato, morrendo na fila de espera.

Naquele ano o serviço de saúde festejou o resultado da estatística que indicava que o atendimento à população carente teve um acréscimo de dez por cento quando comparado com os atendimentos oferecidos no ano anterior!


Roberto Policiano

2 de out. de 2013

Três vovôs - II - Vovô Bob


 
Na casa do vovô Bob

Toda atividade pode.

Fritar pão na frigideira

E assaltar a geladeira.

 

Vale empilhar as cadeiras;

Montar barracas no quarto;

Mil e umas brincadeiras

E ninguém morre de infarto.

 

Pode se fartar de frutas;

Lambuzar-se de geleias;

Empanturrar-se de trufas;

Enfeitar-se de azaleias.

 

Tem risadas no almoço;

Lutas no sofá da sala;

Também guerra de caroço

E até chupança de bala.

 

Naquele recanto pode

Toda e qualquer diversão.

Na casa do vovô Bob

Moram ele e a Multidão.
 
 
Roberto Policiano