Para que viver mais?
Cleunaides
entrou no consultório do clínico geral e sentou-se na cadeira do paciente. Chegara
à turma dos sexagenários, razão pela qual estava ali, pois era avesso a médico.
Do outro lado da mesa o doutor. Barba que não era feita há três dias, acima do
peso, camisa listrada com os dois botões de cima desabotoados, avental branco
totalmente aberto, os dois braços repousados em cima da mesa com as mãos de
lado,mais inclinadas para o teto do que para a mesa. Os dois homens se miraram
por alguns segundos. O silêncio foi quebrado pelo profissional.
- E
então, senhor Cleunaides, o que o traz aqui?
- A
idade, doutor.
-
Pela sua ficha o senhor acabou de fazer sessenta anos, é isso mesmo?
-
Sim senhor!
- E
o que o preocupa?
- A
mim nada, mas depois de muita insistência da Genasina aqui estou eu?
-
Genasina é a sua mulher?
-
Isso mesmo.
-
Entendo muito bem! Vamos lá, tire a camisa e deite-se na maca, por favor.
Depois
dos exames de praxe cada um dos homens voltou a se sentar.
- Já
fez exame de próstata? perguntou o doutor.
-
Nunca fiz!
-
Qual foi a última vez que você foi ao médico.
-
Nunca precisei.
-
Você toma bebida alcoólica?
-
Provei um pouco há muito tempo, mas não gostei. Nunca mais tomei.
-
Você fuma, masca ou cheira tabaco?
-
Dei uma pitada num cigarro de palha, mas me engasguei e tossi tanto que meus
olhos se encheram de água. Desde então fico longe desta praga.
-
Usa algum tipo de droga?
-
Jamais fiz esta besteira!
-
Costuma ficar muitas noites acordado?
-
Claro que não, doutor, a noite foi feita para dormir. Ademais, como levanto
cedo para ir ao trabalho, tenho que dormir logo. Estou tão acostumado com isso
que pouco depois que escurece minha cabeça começa a cambalear de sono, e eu,
como não gosto de teimar com a natureza, vou logo pra cama.
-
Você não frequenta festas?
- Só
as festas dos parentes, mas não fico muito tempo não.
- E
quando você se reúne com os amigos, não fica até tarde da noite?
- Eu
gosto de prosear com os amigos nas tardes de domingo, quando não vou visitar
algum parente, mas assim que escurece eu volto para casa, afinal, segunda de
manhãzinha tenho que levantar para trabalhar.
-
Você ainda trabalha?
- Não
muito como antes, é verdade, mais ainda trabalho.
-
Você não é aposentado?
-
Claro que sou doutor, e já faz um bom tempo. Mas, sabe como é, o que a gente
recebe da aposentadoria é pouco, não dá para depender só desse dinheiro. Além
do mais, ficar em casa sem fazer nada é ruim, pois, mesmo que eu quisesse, a
minha Genasina não me deixa botar a mão no serviço dela. Então... Só me resta
trabalhar, doutor, pois, se a noite foi feita para dormir, o dia foi feito para
trabalhar.
-
Posso fazer uma pergunta bem pessoal, Cleunaides?
-
Claro que pode, doutor, claro que pode.
-
Qual o seu interesse em viver mais?
O
paciente não esperava e, portanto, não estava preparado para responder aquela
pergunta, de modo que, por alguns segundos um desconfortável silêncio tomou
conta do consultório. O sexagenário pendeu um pouco a cabeça para a direita,
apoiou o queixo numa das mãos, e direcionou os olhos para a mesa. O médico,
concluindo que sua pergunta não fora feliz, ameaçou reatar a conversa, mas
Cleunaides fez um sinal com a mão que estava livre indicando que queria
responder. Em seguida disse:
-
Perto da minha casa, na rua detrás de onde eu moro, tem uma pedra. De vez em
quando eu vou com a Genasina lá e nós dois ficamos sentado ali esperando o sol
se pôr. É a coisa mais linda que eu já presenciei. Ver o céu ficar amarelo,
depois alaranjado e então vermelho até escurecer é algo indescritível. Assistir
a estes espetáculos ao lado da minha Genasina não tem preço que pague...
Eu
tenho um amigo que a gente trata ele de Toninho, uma vez por mês a gente se
reúne no boteco do Dico para ouvi-lo tocar violão. Os que sabem cantar
acompanha a música com suas vozes. Eu não toco nem canto, mas não perco aqueles
momentos por nada...
Umas
três vezes por ano minha família gosta de ir à praia. São viagens curtas, de
apenas um fim de semana. Gostamos de ir fora de temporada porque é mais
sossegado. Ver o mar se movimentando para lá e para cá faz mexer a alma da
gente...
Eu
tenho um primo que mora numa chácara não muito longe de casa. É uma viagem de
duas horas de ônibus de onde eu moro até lá. Às vezes vários membros de nossa
família se reúnem naquele lugar, onde passamos o fim de semana. Ouvir os
pássaros cantar, descobrir flores silvestres, encontrar animaizinhos entre os
ramos e colocar a conversa em dia com os parentes é muito bom...
A
genasina, doutor, é uma cozinheira de mão cheia. Só de me lembrar da comida que
ela prepara dá água na boca, mas a macarronada que ela faz supera todas as
outras. O senhor precisa provar a macarronada dela qualquer dia, é uma
delícia...
Bem,
doutor, acho que é por causa destas coisas que eu quero viver mais, eu acho.
-
Nunca ninguém foi tão convincente como você, Cleunaides, disse o médico
tentando esconder a emoção, vou pedir alguns exames para o senhor fazer.
Roberto Policiano
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