Tribo Cadum
Na floresta amazônica, no
trecho entre Atalaia do Norte e Benjamin Constant no Amazonas, Brasil, e a
ponta entre Iquitos, Peru e a Isla Porvenir, Colômbia, vive o povo da tribo
Cadum. A divisão geográfica entre os três países nada significa para os índios
daquela aldeia, mas sim, o bem estar de cada um dos habitantes do lugar. É um
povo pacífico que vive da caça, da pesca, da coleta e da agricultura. No
centro da aldeia contém um depósito onde todos os alimentos são colocados. As
refeições acontecem num salão comunitário e somente inicia quando todos
estão presentes, desde o aldeão mais novo até o mais velho. O último -
seja homem ou mulher - é o que começa a se servir, porém, após montar o seu
cuietê, senta-se à mesa e espera que todos façam o mesmo. Os trabalhos
de preparação e arrumação são realizados pelas aldeãs, ficando a cargo dos
índios providenciarem os alimentos, além de cuidarem da lavoura e dos animais. As
roupas são fabricadas tanto pelos índios quanto pelas índias, geralmente no
período da tarde e até um pouco antes do anoitecer, onde todos encerram seus
trabalhos para a ceia, que é seguida de cantorias em volta de uma fogueira.
No período do inverno,
quando a comida está escassa, os Caduns usam os alimentos com parcimônia.
Há uma espécie de celeiros onde os cereais são estocados. Geralmente uma
porção de milho é socada no período da tarde e o fubá resultante transformado
em um pão para cada membro da tribo, que é consumido acompanhado de queijo
e chá na manhã do dia seguinte.
Em certa ocasião, porém, o
ancião da tribo, enquanto esperava que todos tomassem seus lugares à mesa,
percebeu que um membro da tribo ficara sem o seu pão. Imediatamente o idoso se
levantou, foi até o lugar onde o alimento era depositado, deixou o seu lá e
retornou ao seu assento. Todas as atenções estavam voltadas para ele. Em toda a
história dos Caduns era a primeira vez que acontecia aquilo, de modo que
ninguém sabia o que deveria ser feito. Depois de refletir por alguns minutos, e
com os olhos embebidos de lágrimas, o mais velho da tribo batucou na prancha da
mesa:
Squidum dum dum dum dum!
Deixou passar alguns minutos
e repetiu:
Squidum dum dum dum dum!
Então outro índio,
percebendo a intenção do mestre, levantou-se, deixou o seu pão no lugar onde o
idoso deixara o dele, retornou, sentou-se, e esperou. Novamente o primeiro
batucou:
Squidum dum dum dum dum!
O índio que imitara o seu
gesto respondeu batendo também na mesa:
Squidum dum dum dum dum!
Por umas três vezes o
primeiro batia e o segundo respondia a seguir, produzindo o seguinte som:
Squidum dum dum dum dum!
Squidum dum dum dum dum!
Uma aldeã, entendendo a
mensagem, repetiu o gesto de devolver o pão e esperou. O velho batucou:
Squidum dum dum dum dum!
O índio repetiu:
Squidum dum dum dum dum!
E a aldeã acrescentou:
Squidum dum dum dum dum dum
dum dum dum dum dum!
Novamente o primeiro repetiu
a mensagem, seguido pelo segundo e pela terceira, soando assim:
Squidum dum dum dum dum!
Squidum dum dum dum dum!
Squidum dum dum dum dum dum dum dum dum dum dum!
Um quarto aldeão, um dos
caçadores mais corajoso da tribo, imitando os anteriores, devolveu o seu pão e,
sentando-se novamente, aguardou. Quando o batuque foi reiniciado este último
acompanhou batucando de seu lugar e, acrescentando sua voz às batidas, cantou a
mensagem assim:
É um pão pra cada um!
É um pão pra cada um!
Se alguém ficar com dois,
outro fica sem nenhum!
Enquanto os quatro batucavam
e cantavam a mensagem, um por um dos presentes devolveu o seu pão e sentou-se.
Cada um que retornava engrossava o batuque e o canto, até que todos se
envolveram na transmissão da mensagem.
Quando o ancião percebeu que
não havia nenhum pão sobre a mesa, parou de batucar, levantou-se, foi até o
lugar onde os pães foram deixados, retirou um deles, voltou e tomou seu lugar à
mesa. Cada um dos presentes repetiu o gesto do idoso, até que todos retornaram
à mesa. Porém um dos pães permaneceu sem ser retirado, embora, aparentemente,
cada membro estivesse servido. O velho, que era observado pela tribo inteira, deixou
seu lugar e depositou seu alimento ao lado do que fora abandonado e, retornando
ao seu assento, batucou:
Esperou alguns minutos e
repetiu:
Squidum dum dum dum dum!
Fez isso umas cinco vezes
até que uma aldeã, percebendo a lição, imitou o sábio e deixou seu pão
onde o havia retirado. Ao retornar ao seu lugar à mesa, esperou o ancião
batucar, e respondeu a seguir, soando assim:
Squidum dum dum dum dum!
Squidum dum dum dum dum!
Os dois repetiram o batuque
duas vezes, até que o caçador já mencionado, percebendo a intenção dos
primeiros, repetiu a ação deles, e após a atuação dos dois, respondeu ao seu
modo, soando assim:
Squidum dum dum dum dum!
Squidum dum dum dum dum!
Squidum dum dum dum dum dum dum dum dum dum dum!
Como da vez anterior ele
cantou ao som do batuque a segunda mensagem, que foi a seguinte:
É um pão pra cada um!
É um pão pra cada um!
Ninguém vai comer o seu se
na mesa sobrar um!
Imediatamente os outros
membros da tribo devolveram seus pães e, voltando à mesa, juntaram-se ao
batuque e à cantoria dos primeiros. Novamente todos os pães estavam colocados no
lugar de onde foram retirados.
Então o velho parou de
batucar e todos fizeram o mesmo. Ele se levantou, foi até a pilha de pães,
retirou um deles e voltou à mesa. Todos o imitaram e cada um deles ficou de
posse de seu alimento. O ancião estendeu a mão que segurava seu pão em direção
ao centro da mesa. O índio que estava do lado direito dele fez o mesmo, depois
o seguinte, e o próximo, até que todos repetiram o gesto. Percebendo que todos
estavam com o seu alimento, o idoso inclinou a cabeça, esboçou um sorriso, e
começou a se alimentar. Não se tocou mais no assunto durante aquele dia e a
tribo voltou às suas atividades rotineiras.
Na manhã seguinte o ancião
não pegou o seu pão, mas ocupou seu lugar à mesa de mãos vazias. A seguir uma
anciã repetiu o gesto e sentou-se. Por fim todos estavam à mesa. E o batuque,
iniciado pelo velho, ficou assim:
Squidum dum dum dum dum!
Squidum dum dum dum dum!
Squidum dum dum dum dum dum dum dum dum dum dum!
E o caçador e também cantor,
depois de refletir um pouco, traduziu o batuque assim:
É um pão pra cada um!
É um pão pra cada um!
Cada um comendo o seu
ninguém fica em jejum!
Desde então os aldeões da tribo
Cadum iniciam o dia entoando esta canção antes de fazer a primeira refeição. E
até hoje, apesar de passarem por rigorosos invernos e períodos de seca, ninguém
da aldeia ficou sem o seu pão.
Roberto Policiano