Roberto Policiano

31 de mar. de 2008

Questão de verbo!

Já parou para observar as atuações dos verbos?
Muitos deles parecem uma classe bem conhecida por nós!
O verbo IR, por exemplo, ilustra bem o que quero dizer.
É como certos grupos que sempre promete melhoras no futuro.
IREI sempre trabalhar ao lado de todos.
IREMOS juntos, de mãos dadas, caminhar, etc, etc, etc.
Mas, se olharmos o passado, não o encontraremos lá.
Se pressionado, desconversa:
Não FUI, mas enviei um representante!
Que dizer do agora? Do já? Do presente?
- E aí, Altenor, achas que o IR estará presente?
- Duvido, Astrubaldo, na hora do ‘vamos ver’ ele dá um jeito e VAI embora disfarçado.
E depois do expediente:
- E então, o IR apareceu?
- Que nada! Ele se disfarçou e FOI embora.
Ele é perito em aterrorizar os estrangeiros. Imagine um alemão, que está aprendendo o idioma português:
- Eu querrrrer falarrr com professorrr de plantão.
- Pois não! O que o senhor deseja?
- Eu precisar estudar o verrbo IR, mas encontrar uma erro na livro.
- Que erro o senhor encontrou?
- O livro misturrar verbos. Achar ser erro do gráfica.
- Deve haver um engano. No livro que tenho em mãos está tudo certo.
- Aqui no meu estar misturado verbo IR com verbo ‘FOR’ e verbo ‘VOR’.
Já percebeu que o professor vai ter dificuldades para convencer o alemão, não percebeu?
O verbo IR, no entanto, faz questão de estar presente naqueles momentos cruéis:
Filhinho – Eu não quero tomar vacina!
Mãe – Você tem de IR!
Filhinho às 6:00h da manhã: Eu não quero IR à escola!
Mãe às 6:00:01h da manhã: Você tem de IR.
Nas decepções: Bem que eu senti que não devia IR!
No abandono: Eu queria tanto IR!
No desafio: Quero ver você IR!
No medo: Eu que não quero IR!
Nas desculpas esfarrapadas: Eu IA, mas...; Eu IRIA se...;
No afirmativo, além de tirar o corpo fora, obriga os demais a irem: VAI tu, ou Vá você.
E, no final, quando tudo se acabar, ele fará questão de nos acompanhar até o último segundo, pois, embora adiemos desesperadamente a hora de ocupar o lugar da nossa eterna morada, um dia todos nós IREMOS!

Roberto Policiano

24 de mar. de 2008

suburbano

Minha primeira poesia concreta.


barra funda dez e trinta
aguardo o trem na plataforma
quando chega levo um susto
encosta um treco e não um trem
correm todos procurando
pelo banco preferido
parte o treco trepidando
pelos trilhos barulhentos
treco
treco treco
treco treco treco
treco treco treco treco
treco treco treco treco
passa a vila na janela
na cadência desse treco
prédios carros ponte postes
pista vale passarela
treeeco treeeeeco treeeeeeecoooo
desce gente sobe gente
desce gente sobe gente
um pedinte solicita
apelando à caridade
troco passe moedinha
que não venha a fazer falta
treco
treco treco
treco treco treco
treco treco treco treco
treco treco treco treco
passa a vila na janela
na cadência desse treco
grades casas luminárias
torre muros parabólicas
treeeco; treeeeeco; treeeeeeecoooo.
sobe gente desce gente
sobe junto um moço loiro
e anda o trem de ponta a ponta
ele vende seus produtos
no compasso desse treco
beba água beba Fanta
beba Coca beba Brahma
ele guarda sua carteira
junto ao filho da galinha
todo o troco feito às pressas
bole o filho da coitada
eu queria tanto a água
mas desisto vendo a cena
treco
treco treco
treco treco treco
treco treco treco treco
treco treco treco treco
passa a vila na janela
na cadência desse treco
kombi fusca bananeira
cercas picos caixa d’água
treeeco treeeeeco treeeeeeecoooo
desce gente sobe gente
moço loiro desce junto
corre e pega um treco oposto
treco
treco treco
treco treco treco
treco treco treco treco
treco treco treco treco
passa a vila na janela
na cadência desse treco
morro brejo mata vila
pedras barro vaca trilhas
treeeco treeeeeco treeeeeeecoooo
desce todos em desespero
correm à outra plataforma
onde passa outro treco
muito tempo de espera
finaliza num suspiro
quando o treco chega perto
nem é treco e sim um caco
desce gente sobe gente
sobem juntos vendedores
corre-corre para os bancos
uma mãe carrega a filha
e ocupa o banco ao meu lado
a menina pede tudo
que se vende nesse caco
quero bala quero doce
quero suco e salgadinho
menininha quero-quero
só sossega quando ganha
tudo aquilo que deseja
parte o caco tremulante
sobre os trilhos rangedores
caco
caco caco
caco caco caco
caco caco caco caco
caco caco caco caco
vejo o bairro da janela
no balanço desse caco
pasto gado mato poço
sítios prados fazendinha
pilhas podres de dormentes
esquecidas no caminho
delatando o abandono
desse meio de transporte
treze e trinta finalmente
chego torto ao meu destino
cacooo cacooooo cacooooooo
Roberto Policiano

17 de mar. de 2008

Homenagem ao memorando

Ele está em qualquer escritório. Invade todas as áreas - Departamentos, Divisões, Seções, Setores, etc. Está na empresa pública ou privada. Todo armário ou estante provavelmente contém uma pasta para ele. Desde os primórdios da escrituração ele tem se imposto e ‚ adaptável sob quaisquer circunstâncias; pode nascer duma caneta em punho, de uma máquina de escrever ou de um computador. Em qualquer‚ época ele‚ é indispensável. Do que estamos falando? Do MEMORANDO. Assim, coMEMORANDO o MEMORANDO, presto a este documento esta pequena homenagem:
A secretária apavorada procurou-o por todos os cantos, revirando todas as gavetas, todas as caixinhas de documentos, mas não o encontrou. Aflita chamou o Asdrúbal, o contínuo da sala. Mal ele chegou, ela, que é um tanto possessiva, referiu-se ao documento, motivo de tanta aflição, de um jeito todo próprio de sua personalidade:
- Seu Asdrúbal, por acaso eu lhe passei o MEUMORANDO 2008/01?
Ele, mais pra lá do que pra cá , pois já estava na parte da tarde, e ele gostava de tomar uns tragos na hora do almoço, referiu-se ao documento, também ao seu próprio modo:
- Dona Gertrudes, eu num tô com MÉMORANDO nenhum.
- Veja então se ele está com o Adamastor.
Ao chegar à sala do Adamastor, Asdrúbal encontrou-o em sua mesa, que, como de costume, estava repleta de papel em cima, nas gavetas, nas caixinhas e por onde mais coubesse.
- Adamastor, você tá com o MÉMORANDO 2008/01?
A pergunta não poderia ter sido pior. Como saber? Uma pergunta daquelas, naquela situação e àquela hora não se fazia ao Adamastor! Após uma olhadela inútil por cima da montanha de documentos, apenas para cumprir um ritual, Adamastor, descrente, pois sabia que, MESMORANDO, não acharia nada ali, respondeu:
- Aqui ele ainda não chegou.
O outro, que devido ao seu estado já mencionado não percebera tais detalhes, saiu sem contestar. No caminho encontrou-se com o memorável Orlando, que tinha uma impressionante capacidade de memorização. Aquele documento; aquela Lei; aquele Decreto que ninguém se lembrava, ele, Orlando, sabia. Diziam que ele vivia "MEMORIZANDO" tudo. No entanto, ao ser indagado, nada sabia a respeito do MEMORANDO 2008/01.
Cabisbaixo e abatido, Asdrúbal voltou à sala da secretária. Sem coragem de maiores explicações, foi sucinto:
-Ò dona Gertrudes, tá no MEMO, não descobri nada.
Antes que a secretária se afligisse, porém, entrou o diretor, o Senhor Matusalém, na sala. Passo lento, com um documento na mão, disse, como um verdadeiro saudosista:
- Aqui está dona Gertrudes, já assinei o MEMORANDUM.
Era o 2008/01.
Aqui está a minha pequena homenagem ao MEMORANDO. Foi produzida nas minhas viagens de ida-e-volta de casa para o trabalho, pois, como sempre, vejo-ME MORANDO longe. Como foi produzido numa viagem, memorizava as idéias ao passo que surgiam. Portanto, se alguma escapou, desculpem-me, provavelmente minha MEMORIANDOU falhando.
Roberto Policiano

10 de mar. de 2008

O milagre da vida

De repente a semente
Pequena, frágil,
Encontra um solo que a acolhe,
A umedece e a alimente.

De repente uma folhinha
Pequena, frágil,
A crosta no solo irrompe
Procurando a luz do sol.

Enfrentando obstáculos,
Do solo a vida arranca.
Faz da vida um espetáculo,
De semente faz-se em planta.

O espetáculo continua
Ao sugar ainda mais o chão.
Para que a vida perpetue
Nasce o primeiro botão.

O botão se faz em flor
E, neste gesto augusto,
Deixa a vida mais contente.

Num grande gesto de amor,
Esta flor se faz em fruto
E, dentro dele, a semente!

Roberto Policiano

3 de mar. de 2008

Leleco - segunda e última parte

Na favela Bebeto foi logo abordado pelos ‘donos’ do território, que tentaram aliciá-lo para os ‘negócios’ da região, mas essa não era a intenção dele. Sofreu muitas pressões e ameaças, mas não ‘arredou o pé’. Chegou a ser jurado, mas Chulapa, que era da turma da pesada, fora designado para ‘entortar’ o moleque. Homem já de certa idade, conhecia o Leleco de longe, mas ao tentar convencê-lo da vantagem de fazer parte da turma e assim ser ‘protegido’ de qualquer ‘complicação’, ouviu do menino a resposta;
- Ser livre é mais bão!
- Tu tá desafiando os caras?
- Tô não. Só quero morar sossegado na minha casa. Diz pra eles que eu não vou me meter nos negócios de ninguém. Trabalho no ramo da construção. Alguém tem que construir pro pessoal morar, não é não? É só isso que eu quero.
Chulapa levou a resposta do Leleco para os chefes. No dia seguinte levou a decisão.
- Tá tudo bem, mas tu vai ser vigiado. Se tu vacilar tu vais pra cova.
- Fica tranqüilo que meu negócio é outro.
Leleco fez da favela seu lar. Cresceu na ‘bocada’. Assistiu de perto o que a maioria de nós só toma conhecimento através dos noticiários. Ali cresceu e se tornou um homem. Tinha acesso livre em qualquer parte, pois se tornou o pedreiro mais conhecido da região. Era um bom profissional, e isso fez com que granjeasse o respeito de todos. Mas o que mais chamava atenção no Leleco era sua filosofia de vida. Como todos já sabiam de cor, ele não bebia, não fumava, não cheirava, não picava, não vendia, não levava e nem trazia. Era a prova viva de um milagre. Quando perguntavam por que, respondia resoluto:
- Ser livre é mais bão!
Outra coisa que chamava a atenção em Leleco era seu modo de administrar seu negócio. Mesmo quando pegava um serviço grande, deixava claro que só trabalharia semana sim, semana não. Isso fez com que ele perdesse bons negócios, mas ele não se incomodava. Preferia trabalhar uma semana e folgar a seguinte. Na semana de trabalho não havia quem trabalhasse tanto quanto ele, inclusive nos sábados e domingos, pois sua semana de trabalho era de sete dias corridos. Só que na semana seguinte não havia montante de dinheiro que o fizesse trabalhar. Muitos tentavam fazê-lo ‘enxergar’ o dinheiro que ele deixava de ganhar por causa do seu método, mas sua resposta sempre era:
- Ser livre é mais bão!
Na sua semana de folga ele praticamente não parava na favela. Ia visitar os parentes e os amigos, fazia pequenas viagens, ficava um ou dois dias na praia, ia aos shoppings, cinema, teatro, bibliotecas, museus, enfim, fazia o que escolhia fazer, pois era sua semana de liberdade. Administrava seu dinheiro do mesmo jeito que começou – um terço guardava na poupança, um terço comprava mantimentos e coisas para casa, e um terço usava para cuidar de si. Quando alguém o aconselhava a usar sua reserva para investir em alguma coisa, Leleco respondia na hora que a reserva era para o seu futuro, quando talvez não conseguisse mais trabalhar. Quando lhe pediam uma razão para tal atitude, respondia sem pestanejar:
- Ser livre é mais bão!
Quando Leleco beirou os trinta anos de idade ainda continuava solteiro. Não era uma pessoa solitária, pelo contrário, ia às festas, aceitava convites, levava uma vida social normal, mas nunca teve namorada. Quando os amigos tocavam no assunto com ele, não se aborrecia. Sorria e dizia convicto:
- Ser livre é mais bão!
E Leleco continuou vivendo segundo sua filosofia, feliz da vida. Mas um dia, quando curtia sua semana de liberdade e andava à toa no calçadão, depois da visita que fizera à sua tia, seus olhos cruzaram com os olhos de Maria do Céu. Nem ele nem ela foram os mesmos desde então. Era o ‘pé na bota’; a ‘mão na luva’; o chapéu na cabeça’; a ‘comida no prato’; a ‘bebida no copo’; ou o que quiseres chamar. Leleco e Maria do Céu chamavam a atenção por onde quer que fossem. Quem é Maria do Céu? Para o Leleco ela é tudo, e é isso que importa.
No dia do casamento o Biriba, primo do Leleco, brincou com ele, dizendo:
- Ué Leleco, o que aconteceu com tua filosofia? Deixastes de acreditar que ‘ser livre é mais bão’?
- Não, Biriba, eu não deixei de acreditar que ser livre é mais bão.
- Então, o quê?
- Ser livre é mais bão, é verdade, mas descobri que tá preso é mais milhó!
Leleco é sabido! Quem conhece Maria do Céu concorda imediatamente com ele: ‘Tá preso é mais milhó!’

Roberto Policiano