Roberto Policiano

20 de nov. de 2013

O craque



Nove horas da manhã. Ele chegou ao campinho, que nada mais era do que um terreno baldio, com a bola embaixo do braço, se bem que, tecnicamente falando, não se podia chamá-la assim. O que sobrara de uma pelota de couro fora apenas a parte de fora. A câmara, responsável para mantê-la cheia de ar, há muito não existia, tendo sido substituída por trapos que foram introduzidos a fim de mantê-la arredondada. Em resultado da “manutenção” improvisada, mais conhecida no Brasil como gambiarra, ele possuía algo com que jogar futebol. O lugar estava vazio. Não havia nenhum companheiro para brincar com ele. Nada disso o incomodou, pois, de fato, ela já sabia que seria assim. Vestido com apenas um calção e com os pés descalços, chegou ao centro do terreno, onde depositou a redonda na marca que indicava o centro - feita na hora ao girar o calcanhar contra o solo. Deu uma volta sem pressa por toda a extensão do campinho a fim de livrá-lo de qualquer pedra ou madeira que pudesse atrapalhar a partida. Quis achar quatro objetos idênticos para montar as “traves”, mas, como era comum, não os encontrou, de modo que se contentando com o que estava à disposição. Preparou o cenário para o espetáculo e foi para o círculo central da arena. Esperou o trilhar imaginário do apito do juiz e, dando um passe para si mesmo, deu início a partida que definiria o campeão do torneio. Assim que recebeu a gorduchinha avançou alguns metros e driblou um jogador do time adversário. A torcida em sua mente, que agora superlotava as arquibancadas do estádio, gritou o seu nome ao mesmo tempo em que aplaudia e fazia as bandeiras de seu time tremular, colorindo o lugar. Aquela foi a primeira vítima de suas jogadas, pois, empolgado com o agito de todos, ziguezagueou pelo território inimigo, passando por todos os adversários e, matando a bola do peito, deu uma guinada, deixou o goleiro estatelado no chão e estufou a rede com o poder do seu chute. 1 X 0! Rojões riscaram o céu com fogo, seguido de um barulho ensurdecedor que durou vários minutos, resultando, ainda, numa nuvem de fumaça que invadiu o espaço imaginário do maior craque de futebol de todos os tempos do seu bairro.

A bola foi recolocada no centro do campo novamente, e agora, o mesmo jogador, então no lado oposto e com outro nome, esperava atentamente o reinício da partida para descontar o tento que levara. Assim que o apito foi ouvido o craque, procurando superar o adversário, saiu em disparada e, em menos de um minuto empatou o jogo, o que resultou na mudança instantaneamente da cor do estádio com as bandeiras do outro time praticamente cobrir o local da disputa. Nova queima de fogos, barulhos e fumaças, agora da torcida rival, animava os espectadores. 1 X 1 - estava empatada a partida! A emoção aflorava, pois ali estavam os melhores times decidindo o título daquele torneio.

A festa ainda acontecia quando o placar - com jogadas tão espetaculares quando as primeiras - foi mudado para 2 X 1.

Depois de muitos dribles, gingadas, bicicletas, lençóis, cabeçadas, pedaladas, peixinhos, pontes, e muitas correrias e comemorações, o jogador estava com o corpo molhado de suor e respirava com dificuldades por causa do cansaço e pelo esforço empreendido a fim de garantir a vitória do jogo que, naquele momento, estava em 200 X 199, faltando apenas um minuto para ser encerrado. O centroavante foi empurrado na área e o juiz sinalizou penalidade máxima. Era a chance - a única - de empatar a partida. O craque, embora exausto, colocou a bola na marca do pênalti, apoio as mãos na cintura e encarou o goleiro, que abriu bem os braços a fim de diminuir o espaço entre ele e os travessões, dificultando assim seu adversário. Ao ouvir o apito soar o atacante deu três passos para trás, correu, e, girando o corpo para confundir o goleiro, chutou a redonda do canto esquerdo, que passou raspando na trave. Estava empatada a partida!  Não se contendo em si de tão contente o campeão, ovacionado pela torcida, foi até o fundo da rede, pegou a bola, sustentou-a com as duas mãos acima da cabeça, e correu por várias vezes a extensão do campo comemorando com a torcida enlouquecida, que não parava de tremular as bandeiras e gritar pelo nome do herói. E a partida do século terminou empatada em duzentos a duzentos. Num jogo daquele não havia vencedor nem derrotado. Debaixo dos mais efusivos aplausos o menino, exaurido com tanto esforço, saiu correndo com a gorduchinha debaixo do braço, atravessou a rua, jogou a pelota perto do tanque de roupas, , e entrou no banheiro a fim de tomar banho para ir à escola.
 
Roberto Policiano