Sessão Tortura
Coriolano acordou bem contente aquele dia! Mas o seu estado de espírito durou até o momento em que ele consultou a sua agenda. Logo seu semblante decaiu. De repente a vida perdeu todo o sentido, mas, como não havia alternativa, preparou-se para o sacrifício. Tremeu na hora de sair. Suas mãos seguraram firmemente no batente da porta numa tentativa de permanecer dentro de casa.
Já fora caminhou com muita hesitação. Ao chegar à rua que levava ao seu destino suas pernas bambearam e o seu coração disparou. Suas mãos, numa nova tentativa de impedir a tortura, seguraram firmemente um poste.
Chegou à sala de espera o mais silenciosamente possível para o dentista não escutar. Pegou uma revista e virou as páginas com o máximo de cuidado para não fazer barulho a fim de não delatar sua presença. O doutor, com um irritante sorriso deste tamanho, abriu a porta imediatamente e fez um gentil convite para que ele entrasse e ocupasse o assento.
Depois que o profissional levantou a cadeira quase até o teto, inclinou-a para trás quase até o piso. Nesta posição o moço ficou inteiramente à mercê do profissional. Contou exatos trinta e dois rolinhos de algodão que foram enfiados em sua boca. ‘Acho que ele pretende entrar no livro dos recordes’, pensou; e concluiu, ‘se ele conseguir entrar minha boca entrará também’. Não teve dúvidas de que foram colocados vinte e três aparelhos odontológicos em sua boca. Só conhecia o sugador de saliva e o isolador do dente a ser tratado. Quanto aos vinte e um restantes, não fazia a menor idéia da finalidade deles. Não contente com isso o amável doutor, a fim de contribuir para o relaxamento do seu cliente, fez não menos do que quatorze perguntas, embora não tivesse a mínima intenção de obter qualquer resposta, mas a vítima, sentindo-se na obrigação, por educação, de fornecer o que lhe fora solicitado, tentou grunhir alguma coisa, só para sentir a costumeira batidinha em seus ombros e ouvir um delicado ‘não se mexa agora, por favor’.
- Se não queria ouvir nenhuma resposta, pensou enquanto estava com a boca escancarada e entupida, por que perguntou?
O profissional, alheio ao pensamento mal educado de sua vítima, virou-lhe as costas para trabalhar em sua bancada, fazendo com que os dois olhos assustados de Coriolano se espichassem de maneira jamais vista antes a fim de tentar ver o que o torturador estava preparando, mas este, conhecendo a curiosidade de todos que sentam naquela cadeira, voltou com as mãos atrás das costas e um aparelho esquisito em um de seus olhos que contribuía para aumentar sua capacidade de enxergar melhor seu campo de trabalho. Aquilo mais parecia um ser de outro mundo ou um cientista louco, mas nunca um dentista. Um tremor incontrolado tomou conta do cliente. De repente ele imaginou o seu algoz gargalhar assustadoramente:
- Ha! Ha! Ha!Ha! Ha! Ha! Ha! Ha! Ha! Ha! Ha! Ha!
Ao chegar perto do paciente o profissional trouxe as mãos para frente e as dirigiu para a boca do infeliz. Houve ainda a tentativa de um grito que saiu mais ou menos assim:
- “sgreaaaaauiiiiisss sgrofffiiittt garrrrrraaaaaaaarrrrrrrrgggssss” que, traduzido significa: “Não! Britadeira não!”.
- Não tenha medo que é apenas uma injeçãozinha. Não vai doer nadica de nada, está bem?
-“Está bem coisa nenhuma”, é o que gritaria a vítima se houvesse chance. O que lhe restou foi tentar afastar a cabeça para trás, mas a cadeira, cúmplice do autor da tortura, impediu o movimento.
Algum tempo depois tudo foi ficando adormecido. O ‘mestre’, só para fazer um teste, pegou um daqueles instrumentos pontiagudos que sempre estão à sua disposição, e introduziu-o entre dois dentes do moço. Chacoalhou com tanta força que Coriolano teve a impressão de que cinco a seis rolinhos de algodão saiu voando de sua boca. O movimento bruto contribuiu para que o famoso barulhinho ‘sssssfriiiiiiiiiiissssssssssssssgggggggggsssssssssss’ do sugador de saliva fosse ouvido na sala do andar de baixo.
Depois de se certificar que o local estava anestesiado o dentista trouxe aquele aparelho medonho com o seu tão conhecido som melodioso: tizzzziiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiimmmm. O pobre do paciente imaginou a broca crescendo, entrando pelo seu dente, furando o maxilar, subindo por um dos ossos da face, entrar em seu cérebro e sugá-lo impiedosamente até sentir uma sensação de vazio craniano.
Após cinco minutos com o bendito aparelho ligado, que para o Coriolano pareceu ter passado vinte e sete horas e quatorze minutos, o doutor desligou a terrível máquina, para a alegria da vítima e nossa, e, enquanto se dirigia par a sua bancada, foi seguido pelos olhos assustados do paciente. Logo o dentista voltou com outro aparelho a fim de eliminar, a jato de ar, qualquer resíduo e umidade do dente que estava sendo tratado. Depois de terminar esta operação do trabalho, ordenou a sua vítima:
- Cuidado para não colocar a língua no dente, caso contrário o serviço será perdido e terei que repetir todo o processo.
Nunca alguém foi tão convincente quanto ele. “Mas cadê a minha língua?” perguntava Coriolano para si. Antes de achar a resposta e o membro faltante, voltou o doutor com a amálgama para a restauração.
Trinta minutos – para o dentista, mas para o paciente levou dois anos e meio - depois de iniciado o tratamento, os aparelhos começaram a ser retirados da boca do Coriolano, que contou atentamente a manobra até chegar ao número dezessete. Para o seu desespero o dentista terminou por aí e como havia perdido toda a sensibilidade da boca e de tudo que havia nela, tentou fechar a abertura da garganta para que os aparelhos esquecidos não descessem goela abaixo. Após tirar os rolinhos de algodão, que o paciente jurava que cinco deles foram abandonados ao lado de seus dentes, o doutor, depois de espirar água à vontade na boca adormecida do infeliz paciente que, por um momento, teve a sensação que o profissional queria matá-lo afogado, ordenou que Coriolano jogasse tudo que havia em sua boca no cuspidor. Mas como fazer isso com a boca mole e adormecida? Ademais pareceu ao ocupante da cadeira de tortura que sua saliva havia se transformada numa cola grossa e, por mais que ele tentasse se livrar dela, não conseguiu realizar tal tarefa, cabendo ao dentista a tarefa de literalmente limpar a baba do paciente, que, por falta de opção, foi obrigado a aceitar a humilhante ajuda.
Já na rua, aliviado por se sentir novamente dono de si, passou pela cabeça de Coriolano tomar um sorvete. Já reparou que ao sairmos do consultório dentário dá vontade de tomar sorvete? Seria isso uma maneira inconsciente de nos recompensar por este ato tão corajoso? Nosso rapaz já ia mudando de direção a fim de chegar à sorveteria quando se lembrou da última vez que fizera isso. Não conseguira tomar nem um terço do sorvete por não poder comandar a boca. Ademais, ao chegar a casa, percebeu que havia marcas de sorvetes em sua testa, pescoço e peito, o que levou a deduzir que sua língua, crescida e indomada, deve ter balançado incontroladamente fora de sua boca causando toda aquela sujeira. Assim, achou prudente ir direto para seu tão seguro lar, o que fez com todo cuidado e com uma das mãos segurando o queixo para impedir que a sua língua escapasse da boca e ele, sem querer, pisasse na ponta dela!
Roberto Policiano
4 Comments:
Adorei o texto BoB!
Que moço corajoso!
Se fosse eu sairia correndo!
Ainda bem q ele decidiu não tomar sorvete! haha
Parabéns pela crônica!
Roberto! Por umas e outras criei dois blogs, um deles é esse aqui:
http://luantepinheiro.wordpress.com
Nele recomendo o texto: "Dos Costumes".
Abraço!
Fartei-me de rir ao ler o texto. É que tudo isto já se passou comigo, palavra. Brilhante.
Um abraço.
De fato, Tamy, ir ao dentista é um ato de coragem! Luan visitei o teu blog e li "Dos costumes". O blog é a tua cara, parabéns pela iniciativa. Ana, confesso que também já corri - e ainda corro - de dentista, mas não tem jeito, sempre acabamos na cadeira de tortura! Um grande abraço a todos.
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